23/12/13

Contos Contados 3: "A Maçã"

A Maçã
Esta é a história de um troll. Contudo, o troll desta história não era um troll como os outros: era um troll muito - mas mesmo muito! – medroso. Tinha medo de tudo – ou quase.
Como tinha muito medo dos seus semelhantes, foi viver para a parte mais remota das montanhas onde viviam todos os da sua espécie, numa zona onde não havia vivalma. Lá, apesar de já não ter tanto medo dos outros trolls, dedicava-se a ter medo de outras coisas. Tinha medo que as árvores lhe caíssem em cima, tinha medo de se cortar nas facas que utilizava diariamente, tinha medo que as feridas infectassem. Imagine-se que até tinha medo dos homens! É verdade, tinha medo dos homens, que podia, se lhe apetecesse, esborrachar com o pé! É que, por serem pequenos, ainda o assustavam mais. Os homens estavam para ele como os ratos para os elefantes. Mas acima de tudo, o troll tinha medo de morrer.
Só num dia, imaginava centenas de situações que lhe pudessem causar a morte e passava a vida a tentar evitá-las a todo o custo, daí que tudo o que fizesse demorasse imenso tempo a concluir pois, antes de fazer o que quer que fosse, o troll pensava demoradamente nos riscos que isso poderia envolver e gastava ainda mais tempo a pensar em todas as maneiras possíveis de os contornar, tentando escolher em seguida qual a mais segura.
Antes de ir para a cama, falava muitas vezes para com os seus botões sobre o dia que tinha chegado ao fim, um dia inteiramente dedicado a pensar na própria segurança, como, aliás, eram todos os outros. O que dizia a si próprio em tais ocasiões era sempre essencialmente o mesmo.
- Ai! Hoje foi um dia bem passado. Não corri perigo nenhum. Foi muito agradável. – depois parava e pensava, por vezes, nos seus antigos vizinhos (os que tivera enquanto se atrevera a permanecer entre os seus) – Os outros, se me ouvissem falar assim, diriam que sou medroso. Pelo menos tenho hipóteses de poder morrer velho, sem sentir nada. – considerava. Mas logo a seguir, apesar de não ser velho e de, provavelmente não ter de se preocupar com a velhice ainda durante muito tempo, assomava ao limiar da sua consciência o pânico incontrolável e incontornável que tantas vezes o dominava. Como seria ir para a cama e nunca mais acordar? Devia ser horrível…como cair eternamente num buraco sem fundo! Refugiava-se imediatamente debaixo dos lençóis, como uma criança pequena, e chamava pela sua mãe, que não o podia ouvir porque vivia no lado oposto das montanhas.
Os seus dias eram uma sequência de aflições provocadas pelo seu carácter medroso. Por muito que se esforçasse para evitar qualquer situação que envolvesse o menor risco, os acidentes aconteciam-lhe do mesmo modo que acontecem a qualquer ser vivo, isto é, quando menos esperava. Assim, o pobre troll não podia evitar certos “azares domésticos” como cortes e esfoladelas – coisa que, como disso atrás, muito o preocupava. Quando isso acontecia ficava em pânico. A sua imaginação extremamente fértil começava logo a trabalhar, inventando inúmeras maneiras de o sucedido poder contribuir para a sua morte prematura. Um dia, depois de um desses acidentes, que, por acaso, até o fez derramar uma ou outra gota de sangue, decidiu que aquilo de que precisava era de se tornar imortal ou, pelo menos, “menos vulnerável”. 
O troll lembrava-se de histórias que ouvira na sua infância – e que, na altura, o tinham enchido de medo – sobre uma velha bruxa humana que vivia numa gruta, não muito longe dali, a quem os habitantes das redondezas chamavam « a Feiticeira Verde». Segundo as histórias, a Feiticeira Verde tinha uma maçã mágica que usava para dar continuidade à sucessão das estações do ano. Na Primavera apoiava a parte de baixo da maçã no solo e por todo o lado o verde se tornava abundante; no Verão enterrava-a completamente e tudo atingia o seu auge. No Outono desenterrava o fruto e apoiava a parte de cima no solo, criando o fenómeno inverso, ou seja, as folhas caíam; no Inverno encerrava-o num pequeno cofre.
Além disso, segundo o que constava, essa maçã mágica atribuía a invulnerabilidade a quem a comesse e o nosso pobre troll há muito, que havia muito a desejava roubar, resolveu-se, depois de mais alguns pequenos azares, a levar o seu intento por diante. Ora, isso aconteceu no Inverno, altura em que a maçã da bruxa estava na caixa. Todo contente, pensou que não havia melhor altura para a roubar, pois ninguém notaria diferença nenhuma, uma vez que o dito fruto já não estava em contacto com a terra, e a feiticeira só daria pela falta dela quando chegasse a altura de o Inverno ceder o lugar à Primavera. Claro que o bicho medroso nunca se lembrou que, no caso de ser bem sucedido, estava a condenar a Natureza a um Inverno perpétuo e começou a preparar-se, mas isso também requeria muita coragem, que era aquilo que ele tinha em menor quantidade, e demorou muito tempo a meter ombros à viagem.

Um dia, quando, finalmente, conseguiu reunir a coragem necessária, pôs-se a caminho. Não era fácil chegar à gruta da feiticeira, que estava protegida por numerosas armadilhas destinadas a impedir que alguém fizesse precisamente aquilo que ele estava a tentar fazer. Felizmente para ele, o troll era bom a detectá-las e a evitá-las, ainda que, para o conseguir, demorasse um tempo infinito, como acontecia com qualquer coisa que fizesse, isto porque, para as evitar era necessário controlar os nervos, o que, diga-se de passagem, era para ele uma tarefa bem mais difícil do que descobrir os obstáculos. Por fim, após muito trabalho (sobretudo mental) o troll chegou à entrada das traseiras. Aterrorizado, com as pernas a tremer, entrou.

A gruta era um vasto labirinto escavado na rocha. Era húmida e bafienta e o seu cheiro esquisito fez o assaltante espirrar repetidamente. Como tinha visto a feiticeira a sair de casa, uma figura humana sobre a neve, na direcção do sopé das montanhas, avançou menos cautelosamente. Queria ser rápido, pois temia que ela voltasse.
Chegou rapidamente a uma câmara com vários metros de altura, atapetada com uma terra macia e de cor vermelha. Era mais húmida que as outras divisões por onde ele tinha passado e o ar ali era tão pesado que se tornava quase irrespirável. Talvez fosse aquele o sítio onde a maçã era colocada no chão, gerando as estações do ano. Foi então que o troll a viu; uma arca pequena, feita em madeira e guarnecida a ferro. Imprudente, lançou-se sobre o baú, agarrando-o como um náufrago agarra uma bóia, conservando-o apertado contra o peito. Sentou-se no chão, abriu-a e retirou de lá de dentro a pequena maçã, de um verde brilhante. Comeu-a de uma vez e deixou-se ficar, à espera de sentir o efeito que, achava ele, o alimento enfeitiçado provocaria. Para sua grande surpresa e aflição, em vez de se sentir invulnerável, começou a sentir-se ensonado…muito ensonado. Que estava a acontecer? No momento em que a dúvida o assaltou, enchendo-o de medo, uma poderosa onda de cansaço invadiu-o e as suas pálpebras cerraram-se, não lhe dando tempo para encontrar uma resposta.

Quando acordou, horas mais tarde, e se viu impossibilitado de mover um só músculo que fosse, pensou que o seu fim estava próximo. Teria a feiticeira voltado, encontrando-o ali a dormir e, dando pela falta da maçã, decidido castigá-lo? Continuou a esforçar-se por se levantar, mas o esforço era inútil.
Foi então que a feiticeira apareceu. O nome assentava-lhe na perfeição: era uma mulher baixa e muito curvada, avançada em anos. Tinha longos cabelos brancos, tão compridos que se arrastavam pelo chão, usava um longo manto verde e dela emanava uma sensação inexplicável de poder e sabedoria. Estudou a expressão do troll, o seu ar apavorado. Pensou que ele bem merecia uns mil anos de castigo por ter ousado entrar, sem ser chamado, na sua casa e comido a Maçã das Estações. Mas esse instinto castigador desvaneceu-se ao lembrar-se de que o troll era uma pobre alma medrosa que vivia temerosa de tudo e mais alguma coisa. A Feiticeira Verde nunca conhecera o medo mas calculava que fosse uma sensação horrível…
- Porque vieste até mim sem que eu te convidasse? Há algo em que te possa ajudar? – perguntou, com alguma frieza.
O troll gaguejou algo incompreensível. Como safar-se desta?
- Fala! Eu não sou só a Feiticeira Verde, a Rainha das Estações, sou também adivinha. Sei tudo o que tu sabes, até o que te esforças por me ocultar. Mesmo assim, quero que sejas tu a falar por ti próprio. – como o troll continuava a esforçar-se por se mover, acrescentou - Não tentes mexer-te! É melhor para ti. Temi assustar-te, por isso lancei-te um encantamento para evitar que fugisses quando eu tentasse falar contigo. Sei que roubaste e comeste a Maçã mágica que eu guardava aí dentro. – disse, apontando a arca escancarada. – Porque fizeste isto? Não sabes que é loucura assaltar a casa de uma feiticeira ou tentar enganá-la? – insistiu ela.
O troll parecia ter finalmente recuperado a capacidade de falar:
- Eu…eu…queria comer a maçã para me tornar invulnerável…contaram-me, em tempos, que a Maçã também tinha esse poder…
- Foi mal pensado. Eu sei usar magia, ou já te esqueceste dessa parte da história? A Maçã faz apenas aquilo que eu quero. – pôs-se a enrolar uma madeixa dos seus cabelos brancos. – Querias tornar-te invulnerável… Porquê?
- Porque sou muito medroso. Todos os meus dias são passados a tentar nunca me magoar. Pensava que, se comesse a maçã, poderia pôr de lado essas preocupações e empregar o tempo a fazer coisas mais úteis sem ter de pensar se fazê-las seria ou não um risco e…
- Chega. – disse a Feiticeira Verde. – A Maçã não terá qualquer efeito em ti porque a roubaste, mas eu posso exercer o meu poder em teu proveito e fá-lo-ei. Quero apenas que percebas uma coisa, antes disso: não viverás mais nem a tua vida será melhor por não correres riscos, será apenas vazia e sentir-te-ás como se estivesses dentro de uma prisão. A morte é algo por que todos teremos de passar, mais tarde ou mais cedo. Tudo o que vive tem que morrer. Até as estrelas. Quem somos nós para nos opormos a essa lei intemporal. Deixa que a tua vida seja preenchida por preocupações menos egoístas… - disse a feiticeira, olhando-o com o seu olhar verde esmeraldino enquanto erguia lentamente o seu bastão de madeira trabalhada. O troll soube que, o que quer que ela lhe fosse fazer, o faria no momento em que baixasse o bastão. – O que te vou dar, troll medroso, não é a invulnerabilidade, é algo muito melhor. Vou dar-te coragem! - e baixou o bastão, que tocou no solo, produzindo um som surdo.
Para contar o resto da história deste troll, antes o mais medroso dos seres do Universo, basta dizer que, dias depois, mudou de casa, instalando-se do outro lado das montanhas, perto da sua família.

 Tomás Vicente (ex-aluno)




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