01/02/14

Contos Contados 8: "A Morte Morreu de Medo"

A Morte Morreu de Medo
Em tempos, a Morte teve medo. Que coisa estranha, não é? E logo a Morte, conhecida por estar acima desses padecimentos corriqueiros e convencida da sua imunidade às sensações humanas! E, no entanto, ela, por ser de outra estirpe, não conseguiu fazer como nós e transformar o medo em coragem. Ficou mesmo aflitinha, coitada…Mas essa história nunca foi registada numa crónica, ao contrário do que costuma acontecer com os grandes acontecimentos que vão tendo lugar ao longo do tempo e, como aconteceu há muito, muito tempo, já só é recordada nuns versos vagos e solitários…
Nos tempos de antigamente
Andava a Morte pelas aldeias
A coberto do breu e sem candeias,
Tentando cumprir a tarefa premente
Que era deste levar ao Outro Mundo
Todos os que coubessem
No seu anafado saco sem fundo.

Certa vez, na casa de uma feiticeira
Entrou a Ceifeira imprudente.
A velha que ia buscar
Sentada estava numa cadeira,
A estudar a sua bola de vidente,
Vendo de outrem o destino,
Que, fosse ou não acidental,
Certo iria parar à sua bola de cristal.

«Tu, ò velha feiticeira,
Já a este Mundo não pertences.
Terás pois de vir comigo, a bem,
E passar mais além.»

«Terei, bem o dizes,
De ir em penosa viagem,
Uma jornada sem paragem.
Mas coisa alguma predizes
De que não tenha eu já conhecimento.
Quanto a mim, irei anunciar
Algo que além está do teu pressentimento:

Revelar-te-ei a tua sorte,
Que, assim vi na bola intemporal,
Breve encontrarás o teu próprio fim;
És ainda insensível e forte,
Mas convence-te de que abandonarás,
Um dia, este mundo e este tempo,
Pois também para ti um dia virá
Em que a tua vida fenecerá.»

E, dito isto e estando o assunto encerrado,
Levantou-se a velha e saiu de casa,
Para longe do calor da madeira em brasa,
Esperando a meta derradeira.
Mas a Morte, junto à lareira
Não teve forças para partir;
Atónita estava e aterrorizada
Pela negra profecia escutada.

Nunca saberemos se foi o tema que acabou por secar a inspiração deste poeta cujo nome ninguém vivo alguma vez ouviu ou se o fim do poema se perdeu, com o tempo. No caso de ter sido esquecido o fim da história, não temos culpas a atribuir - melhor fora, não podemos culpar o Sr.Tempo! -, mas se foi o autor que se cansou do poema, fosse por ter outros projectos ou por capricho da imaginação e da arte, teríamos motivos para o censurar por, tão descortesmente, nos ter deixado suspensos no fio cortado da imaginação e não nos ter contado o resto da história, não fosse dar-se o caso de outro poeta, aproveitando a deixa, ter registado a conclusão deste espantoso acontecimento perdido nos anos:

Longo tempo assim ficou a Encapuzada,
Ali permanecendo como que petrificada,
Até que saiu a correr por montes e vales
E lá se encontrou com a Sorte,
Que dos caminhos do destino
Só tenta fugir quem não tem tino.

Tomás Vicente (ex-aluno)