24/10/14

Em Busca do Tempo - um artigo de Pedro Mexia

Em Busca do Tempo
por Pedro Mexia
Acerca do tempo, leio Bergson, ou Proust, ou Dick, ou os físicos, mas volto, uma e outra vez, ao texto inaugural de Agostinho, bispo, santo e génio: "Mas, então, o que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei bem o que é; mas se me perguntarem, e eu tentar explicar, vejo que não sei". 

Eu vivo obcecado com o tempo. Com a substância do tempo, a concepção de tempo, as convenções do tempo, a passagem do tempo, os efeitos do tempo, tudo o que tenha a ver com o tempo me deixa inquieto ou fascinado. E sei que o essencial vem em Agostinho, nas "Confissões", escritas há mais de mil e quinhentos anos: "O que é então o tempo? Quem o poderá dizer com clareza e em poucas palavras? E quem será capaz de compreender bem aquilo a que se refere? Não há nada tão conhecido como o tempo, nada que esteja tão presente no nosso discurso; e, quando falamos dele, entendemos sem sombra de dúvida do que estamos a falar, e entendemos também o que os outros nos dizem quando falam desse assunto." Mas não, não entendemos: falamos de outras coisas quando falamos do "tempo", uma vez que não conseguimos sequer conceber o que seja "o tempo": "Assim, quando nos contam coisas passadas (...), essas coisas vêm da memória, não das próprias coisas que se passaram mas das palavras que tirámos das imagens dessas mesmas coisas, que, atravessando os nossos sentidos, imprimiram no nosso espírito os seus traços e vestígios."

Deus é, para o cristão Agostinho, o criador de todas as coisas, e, portanto, o criador do tempo. Mas pergunta-se o bispo africano: como é que isso aconteceu?, o que é que havia antes de haver mundo e criaturas?, e tempo? Agostinho sabe que Deus criou o mundo, mas quer perceber mais coisas, quase pede desculpa por esse irreprimível desejo. Como é que o mundo foi criado? E, antes de criar o mundo, o que é que Deus fazia? O Criador talvez tenha feito tudo a partir do nada, porque nada existia, não havia matéria, apenas o Verbo, isto é, a vontade eterna. Deus estava antes do tempo, existia em estabilidade imutável, num eterno hoje, numa eternidade sempre presente. Não se concebe "um tempo" em que Deus não "fizesse" nada, justamente porque antes daquilo a que chamamos "a criação" não existia "o tempo". O tempo é uma coisa criada. É uma criatura, como nós. 

Como todas as pessoas [que(?)] têm angústias acerca do tempo, Agostinho faz perguntas sobre o sentido, o porquê. Porquê criar o mundo e o tempo? Algumas pessoas perguntam-se se Deus experimentou "qualquer movimento novo", "qualquer nova vontade que O levou a dar existência" às criaturas. Mas como é que na "eternidade" em que Deus vive se manifesta uma vontade ou um movimento? "Porque a vontade de Deus não é uma criatura, mas está antes de todas as criaturas", e "nada seria criado se a vontade do Criador não precedesse essa criação". Portanto, diz Agostinho, "a vontade de Deus" é a sua própria substância: "(...) Se aconteceu alguma coisa na substância de Deus que não se tinha manifestado anteriormente, não podemos na verdade dizer que essa substância fosse eterna. Se a vontade de Deus tivesse querido, desde sempre, que existissem criaturas, porque é que essas criaturas não são também elas eternas?" Terrível pergunta.

Claro que "medimos" o tempo, em minutos, dias, meses, anos. E medimos espaços, contamos sílabas, ouvimos silêncios, assistimos ao movimento dos corpos e dos astros. Mas o "movimento", defende Agostinho, não é o tempo, é apenas uma sua manifestação. E as nossas "comparações" são casuísticas, incompletas, inconclusivas. Além de que só podemos "medir" coisas presentes, coisas que estão a acontecer agora, que podemos seguir em todo o seu percurso. Medimos, na verdade, sem conhecermos quem medimos, medimos as manifestações precárias do tempo, não o próprio tempo. O tempo é uma "duração", mas duração de quê? Há um lugar-comum inevitável: o passado já passou, o presente torna-se de imediato passado e o futuro ainda não aconteceu. Por isso, Agostinho sente-se uma criança, a quem se ensina que o presente estava escondido algures, aparece de repente e vai-se logo embora: "(...) Não podemos dizer o que o tempo é, uma vez que, em geral, ele já não é." Tenho uma enorme reverência por este texto porque é um denso ensaio cosmogónico e teológico, mas ao mesmo tempo uma súplica, uma ânsia. E inclui a mais cristã de todas as perguntas:"Temos de esperar pelo fim dos tempos para saber o que é o tempo?"

Agostinho sabe que isto é a pergunta de uma simples criatura, pois o criador no qual acreditava habita a eternidade, enquanto nós vivemos num presente que não entendemos, assombrados por um "passado apagado pelo futuro" e um "futuro que se sucede ao passado". Sabemos que aconteceram, acontecem e acontecerão fenómenos, e alguns até os podemos prever, como a alvorada, embora só os conheçamos quando eles de facto acontecem. Porque, se não compreendemos o que é o tempo, temos pelo menos a memória. Imagens da infância, por exemplo, que continuam no nosso espírito apesar de toda a nossa ignorância e mesquinhez. Não há passado, mas lembrança; não há presente, mas atenção; não há futuro, mas espera. Ou, como diz Agostinho, "o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras".

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09/10/14

Em Homenagem à Professora Ascensão Teixeira (1949-2013)

Em Memória da Professora Maria Ascensão Dinis Teixeira (1949-2013)

“Forgive these wild and wandering cries,
Confusions of a wasted youth;
Forgive them where they fail in truth,
And in thy wisdom make me wise.”

Alfred, Lord Tennyson, In Memoriam A.H.H.

Escrevo este texto em memória da professora Ascensão Teixeira, que ensinou nesta escola durante uns longos quinze anos, tendo-se reformado em Fevereiro de 2009, e que faleceu no ano passado, a 12 de Agosto de 2013. Ao olhar para trás, confirmo com vergonha que mais de um ano decorreu desde que primeiro tentei escrever este pobre e defeituoso in memoriam da pessoa que foi, de certo modo, a minha primeira mentora, tanto do aluno que fui e sou como do ser humano que se foi e está a ser construído. Mais tempo tardaria, talvez, porque uma certa cobardia incita-nos sempre, em tais circunstâncias, a recusar a lembrança das coisas e a dolorosa perplexidade que advém com esse lembrar. Inconscientemente – ou assim dizemos, para aplacar esse “bicho álacre e sedento” que se chama consciência – é fácil cair nas malhas da tentação de adiar o momento da confrontação com as circunstâcias, as perdas, o seu abissal significado; e facilmente também o adiamento se torna um hábito e se torna definitivo, porque a obnubilação do sujeito o exime do sofrimento. O esquecimento parece ser o remédio por excelência de todo o tipo de sentimentos de culpa e escrúpulos da consciência, um remédio que, em abono da verdade, creio, deveríamos ter a coragem de não tomar. Culpado que sou, também, aqui estou, antes que seja tarde demais, procurando expiar essa culpa.

Mas escrever nunca é fácil. Escrever sobre algo que nos toca, então, que abala a estabilidade das certezas e das assumpções que suportam uma rotina diária que, para nossa comodidade, queremos ataráxica é ainda mais difícil – e que coisa pode abalar mais o homem do que a morte? Porque, se posso concluir que escrever é, idealmente, demandar respostas – ainda que, na prática, tal não seja sempre a regra que “alma o ser” da criação, como podemos confirmar com facilidade e pena -, então aqui trata-se de expressar choques profundos de realidades, pôr o homem em face de si mesmo e das ilusões do olhar através do qual se apercebe de si e do mundo. Será, também, testar o sujeito de uma reflexão até ao limite, pôr à prova a sua capacidade, assim professada com inevitável vaidade, de encontrar uma solução para o desequilíbrio que desencadeou tal processo, o desequilíbrio do homem que vive em face da morte e, consequentemente, de uma tomada de consciência do seu lugar em relação à dualidade da existência e ao tempo, que a enquadra.

Disse que a escrita é demandar respostas; se é também encontrar respostas, eu não posso afirmá-lo, porque respostas é coisa que não tenho. Podia mesmo dizer que estou convencido de que o resultado de uma tentativa de, como se costuma dizer, “fazer as pazes” com a realidade, com o tempo, com perdas e dores, com o resultado da equação humana do viver que experienciamos é uma tarefa megalómana, hercúlea – quase ímpia, diria eu, pela dimensão sobre-humana de que se reveste. Se pensarmos bem, que somos nós se não procura? Que é o homem se não uma absoluta falta de respostas, um lançar-se a navegar em mares não cartografados? (E em face da Morte, então, que modifica, num momento apenas, toda a configuração do quadro da nossa existência, que pode o homem ser, ter ou saber que o ajude criar respostas? Nada, nada senão ilusão. No momento de encarar “os factos da vida”, para usar o dizer comum, soam quase ridículas as filosóficas palavras do poeta John Donne “Death, be not proud, though some have called thee / Mighty and dreadful, for thou art not so”. Mas é, é sim, temos vontade de lhe responder ) O resultado, pois, não é uma exacta carta de marear, a única certeza é ter-se viajado – e esta mesma, dentro das limitações da percepção de cada um se define e circunscreve. Creio que nesta empreitada não me posso pronunciar se não derrotado; razões virão mais à frente. Mas ouso esperar que a intenção se sobreponha ao resultado último.

Intuí, no princípio deste texto, um dever de lembrar. Neste dever humano de lembrar, considero a existência de dois planos, um plano pessoal e um outro que é institucional, um que é, aqui, meu (como de outros é separadamente) e um outro que me transcende. Considerarei, agora, aquele em primeiro lugar e só depois este último, por motivos de coerência e também por razões óbvias concernentes à natureza deste texto. Tal opção leva-me de volta à interrogação que deve posicionar-se no cerne da escrita de qualquer texto, seja este de que ordem for: a interrogação dos seus motivos verdadeiros, profundos e sinceros para existir.  A uma primeira tentativa de aproximação da questão, poderá parecer redundante, afinal, afirmei atrás a crença, tornada premissa, de que o esquecimento não deve ser tomado como uma saída de emergência, uma escapatória algo ignóbil. Tudo muito bem, mas isso é-o genericamente. Pretendo pois responder a uma questão que eu gostava de poder afirmar análoga às que esperaria encontrar formadas no espírito de todos quantos, de direito, deveriam deparar-se com o mesmo caminho de lembrança e homenagem devida a esta pessoa verdadeiramente única, insubstituível, incomparável que nos deixou. Passo agora, prestes que estou a empreender esta via (sacra) de tributo à memória da professora Ascensão, a apresentar as razões do meu posicionamento (como as vejo) no quadro deste dever de lembrar.


Cheguei como aluno à Escola de Telheiras em Setembro de 2005. Terá sido algures por volta do dia 16 que vim para a reunião ritual de início de ano com a Directora de Turma, a professora Maria do Carmo Vaz, que recebeu a reforma ainda antes da professora Ascensão, no período lectivo precedente, em Novembro de 2008. Os cinco anos seguintes, findos na febre dos exames em Junho de 2010, foram, decerto, um dos períodos mais dourados da minha vida -  mais inocentes também, e por isso, quiçá, igualmente dos mais abundantes em matérias para retornos da faculdade reflexiva de um eu mais velho. É surpreendente lembrar o quão cedo a professora Ascensão entrou no universo idílico que me acompanhou em Telheiras! (Aqui, como é óbvio, invoco o dizer aforístico de Kierkegaard de que “a vida tem de ser vivida olhando para a frente, mas só pode ser entendida olhando para trás”). Esse rapaz insular e pouco comunicativo vindo de um percurso particularmente protegido e isolado no ensino primário tinha pouco à-vontade ao dar os primeiros passos numa aprendizagem de socialização; encontrei, bem cedo, um refúgio seguro e igualmente idílico na Biblioteca Escolar, que, ao tempo conhecíamos por CRE, o Centro de Recursos Escolar. Os meus intervalos e horas de almoço eram, em larga medida, passados a desenhar, sentado a uma mesa, imerso no mar de figuras imaginadas que, ao gosto de umas Crónicas de Spiderwick que eu ainda não conhecia, pareciam muito mais reais do que o mundo da minha experiência. E foi nesse ambiente que travei conhecimento com a professora Ascensão.

Fazer amigos foi um processo difícil, lento e cheio de frustrações. Por vezes, não nos apercebemos da falta que as pessoas nos fazem e deixamos contagiar-nos por uma certa “moda” de raivazinhas quotidianas, pequenas embirrações e outras emoções de ilusória importância. Mas o facto é que, como Aristóteles dizia, “quem não vive em sociedade, ou é um grande deus ou uma grande besta”, pelo que as pessoas, não sendo nenhuma das coisas, precisam de outras pessoas no seio das quais possam desenvolver-se como seres humanos. Ora, aqui, chego enfim ao ponto convergente desta digressão pelo álbum de memórias. A professora Ascensão, nesses dias agora faz tempo corridos, foi uma das primeiras pessoas a tomar a inciativa de tentar atravessar as barreiras comunicativas da minha tendência para o isolamento e para uma solidão que, aos poucos começou a sedimentar-se e a sufocar, em vez de proteger. Uma das imagens mais vívidas que guardo desses meus dias de criança ainda é a da professora, sentada ao pé de mim e de um colega igualmente pouco falador de quem me aproximei, a ver-nos desenhar, em silêncio. Depois, fazia-nos perguntas sobre os desenhos, interessava-se assim que lhe dávamos essa oportunidade. Fazia-nos, ou assim o lembro, sentir que, ao sairmos do mundo do desenho, este tinha sentido para mais alguém. É um processo lento, ganhar a confiança de uma criança introvertida, mas nunca vi a professora Ascensão desistir de nenhum aluno – e de mim, certamente, não desistiu, pelo que lhe tenho uma enorme dívida de gratidão que agora, desgraçadamente, não poderei jamais esperar pagar.


Só vim a ser aluno da professora Ascensão no meu oitavo ano, expectativa que me acompanhava desde o quinto ano, lembro bem. Nessa altura já desenhava menos, e, com a paixão pelas histórias, estava a nascer e em íngreme cresdendo o que havia de se tornar um amor pelas línguas, pela música da palavra, pelos segredos do diálogo com os textos. Ora, isto para dizer que aos desenhos, no meu percurso de conversão (processo quase de fé) de criança em adolescente, seguiram-se outras fases, mas as ligações continuavam. A professora Ascensão (e outros professores) esteve presente ao longo de todo esse processo, como esteve no de inúmeros alunos que, sei-o bem, dela guardam grata memória. Tenho sempre dito que a pessoa que sou foi moldada a partir de um barro instável por inúmeras mãos. De poucas pessoas tal é tão fielmente verdadeiro como da professora Ascensão Teixeira e talvez isto dito bastasse para dar a entender o significado que para mim tem escrever este texto. Não resisto, no entanto, a dizer mais algumas palavras.

Muitos episódios poderia contar, entre máximas, lições de vida e de moral, técnicas e orientações metodológicas que recebi da professora Ascensão, antes de ser formalmente seu aluno, durante esses dois períodos do meu oitavo ano e mesmo depois, no contacto que mantivemos. Dentre a vastidão de memórias, não posso deixar de narrar um episódio que, para mim, diz muito e fala com melhor dicção do que eu sou capaz de fazer por palavras próprias.

Lembro-me como se tivesse sido ontem. Algures no Inverno de 2008/2009, pouco antes da sua reforma, portanto, entrei no CRE como se entrasse em casa e encontrasse um cheiro mágico a acolhimento. Avistei, quase de imediato, a professora Ascensão com dois alunos do nono ano, mais velhos que eu; eram eles o Ronit Himlatlal e o Bruno de Magalhães, antigos membros da primeira equipa de monitores da BE criada nesse mesmo ano lectivo pela professora Paula Andrade, que era então, como agora, coordenadora da BE. Nada de estranho neste encontro não fosse o facto, que me causou estranheza, de cada um dos três girar suavemente as mãos  em direcção ao mesmo ponto indefinido algures na massa de livros na estante, como se estivessem a aquecê-las à lareira numa noite fria. Aproximei-me, intrigado. Bons-dias e cumprimentos amigáveis trocados, devo ter acabado por ceder à curiosidade e perguntado o que é que se passava. Nunca mais me hei-de esquecer da resposta da professora e do efeito que provocaram em mim as suas palavras:
- Estamos a aquecer-nos ao pé de uma fogueira invisível! – disse, com uma serenidade amigável que lhe era habitual.
Passado pouco tempo, acrescentou, em voz baixa, quase como se murmurasse uma oração mágica, mas sempre sorrindo levemente para nós:
- Ah, a imaginação é uma coisa fantástica!
(Ao preparar-me para relatar este momento, dei comigo a pensar muitas vezes, a fazer um esforço de memória para garantir que não erraria na reprodução das suas palavras exactamente como estas tinham sido proferidas. Fiquei algum tempo na dúvida se não seria antes “Ah, como é fantástico o poder que as palavras têm”, indeciso também quando à ordem sintáctica, mas sobretudo entre “imaginação” ou “palvras”. Estou quase cem por cento certo, no entanto, que o que transcrevo agora foi exactamente o que ouvi.)

Estas palavras têm-me acompanhado desde então e nunca cessei de dar por mim a reflectir sobre elas e sobre a lareira invisível onde ardia um acolhedor fogo caseiro. Lembro-me que a suavidade e a bondade que eu sentia irradiarem da professora Ascensão, a candura amadurecida da sua visão, sempre davam a entender que, ao falar, respondia a estímulos enraizados nalguma dimensão profunda – para mim então obscura – da natureza humana. Creio que não saio da mais estrita verdade ao afirmar que foi graças à professora Ascensão - que, falando connosco como as crianças que éramos conseguia ainda assim trasmitir-nos lições e observações agudas acerca do questionamento da pessoa humana e do seu lugar no mundo em que vive – tive o meu primeiro contacto com duas questões fundamentais: 1) que a vida não é uma tela inócua, que o ser humano é a realidade mais complexa do universo; 2) que é no plano narrativo, no universo das histórias, no reino da palavra e da ficcionalização e “verbalização” de si que o homem encontra um plano maior para se pensar a si, aos outros e ao mundo (e daí, claro, o indizivelmente fundamental papel da literatura, da língua; o seu poder, a sua magia). Lições fulcrais para qualquer jovem, lições que ainda não acabei de aprender, lições que talvez só agora comece a aprender. E disse-nos tudo sem nos impingir nada. A professora conversava connosco e as mensagens ficavam, latentes em nós, à espera que o tempo viesse para as podermos pensar.

Relembro, pois, a professora Ascensão como a pessoa em que eu primeiro vi espelhada o gaudium magnum que preenche a vida de todos quantos se dedicam de verdade à nobilíssima causa de conduzir a formação humana (porque a formação académica só o é de facto se o conhecimento for acompanhado do desenvolvimento humano que o permite deter e aplicar de um modo altruísta e verdadeiramente civilizado – ou por outra, culturado) de sucessivas gerações de alunos. Cada aluno, cada particular percurso de aprendizagem representa, digo eu, uma peregrinação cujo sucesso significará a dignificação de tudo o que, bom, está contido no conceito de “alma humana”. Mais revoltantes são os sucessivos ataques ao papel da educação no seio das nossas sociedades quando nos lembramos que o significado de uma paidéia, essa epopeia sagrada, reside na diferença fundamental entre falhar ou ter sucesso na formatação básica de cada ser humano que se prepara para encetar uma epopeia em que finis origine pendet. Mas mais do que isso, recordo aqui uma pessoa extraordinária que nunca desistia de ninguém, que nunca hesitava em pegar mesmo no mais fraco barro para daí ajudar a nascer uma pessoa melhor – e mais feliz. Fazia-o como que imbuída de uma pietas romana, esse conceito, estado da alma, que a palavra portuguesa “piedade” só muito superficialmente pode traduzir. Uma daquelas pessoas raras, especiais, que procurava sempre o melhor em cada um, que trabalhava incansavelmente para dar sempre o seu contributo para fazer de todos nós melhores pessoas, pessoas mais felizes. Ou, talvez seja esse o termos mais adequado, pessoas mais humanas. Tantas palavras ditas na tentativa de exprimir como era a professora Ascensão que eu conheci, e no entanto, nem por sombras suficientes. Tudo somando, no entanto, creio que os traços de carácter que mais vividamente lhe recordo poderiam ser sintetizados deste modo: era uma das pessoas mais incondicionalmente generosas e humanas que conheci até hoje e não creio vir a conhecer muitas – ou mesmo alguma – de quem possa dizer o mesmo; a par deste, um outro traço maior recordo, o da pessoa que, apesar da longa e sofrida experiência, conseguia conservar uma candura, uma doçura, um inocência luminosa. O adjectivo “luminosa”, da luz desses anjos que passam na nossa vida e não se repetem, será, de resto, o mais indicado para descrever este ser humano formidável que, mesmo nos momentos que lhe eram mais penosos, não deixava de ter o condão de acordar o que de bom houvesse em todos e cada um.


Apenas umas breves palavras mais. Antes de pegar no segundo fio do meu raciocínio que na introdução deixei anunciado, não posso deixar de voltar o meu olhar para estes últimos anos, após a reforma da professora Ascensão em 2009. Mantive contacto com a minha antiga professora desde então. Ao longo desses quatro anos, nunca deixou de dispor generosamente do seu tempo para ouvir as minhas novidades, nunca deixou de se interessar, de aconselhar, de se preocupar, ouvidos atentos e receptivos a tudo, desde do fio dos eventos do meu percurso até aos meus problemas da mais variada ordem, passando por conversas longas sobre o Acordo Ortográfico. Nunca ouvi a professora queixar-se e nas nossas conversas sempre ouviu e aconselhou mais, mas aos poucos, ao longo do tempo, foi começando a perceber que os anos da reforma, em vez de lhe trazerem paz e felicidade, lhe trouxeram novos fardos e sofrimento - e cada vez mais pesados. E mesmo um adolescente (agora adulto), não pôde deixar de pensar nisto (e agora, e nestas circunstâncias ainda mais): disse acima que tinha para com a professora Ascensão uma dívida de gratidão irreparável por tudo o que fez para destruir os muros de solidão que me rodeavam na escola…terei eu feito sequer o mínimo para minimizar a sua solidão? Se imodesto é o pensamento de que se podia ter feito alguma diferença, é uma imodéstia em que não consigo deixar de incorrer. Não é uma certeza, é uma dúvida, uma dúvida que ninguém pode calar e com a qual terei de viver daqui em diante. Porque a morte de alguém é a condenação dos vivos, o que nos traz é a dimensão do que não fizemos, de que, de algum modo, não somos nada porque não soubemos fazer nada. A Morte confronta-nos com a  consciência da extensão do nosso falhanço para com a pessoa que morreu, falhanço tanto maior, neste caso, porque se trata de uma pessoa que merecia o melhor de nós, aquelhe melhor que muitos de nós não possuem sequer, porque nos deu o melhor si. Só podemos, sem esperança, perguntar aos ecos: onde estávamos nós quando fomos precisos?


De tal sorte me vejo chegado ao último ponto do meu texto, ao segundo plano do «dever de lembrar» a que aludi. Refiro-me ao plano oficial da Escola, a instituição representante do ideal pelo qual a professora Ascensão trabalhou durante trinta e nove anos. Não é agora, não é nova a constatação de que as instituições facilmente caem na tentação de se tornarem autómatos impessoais, burocraticamente desprovidos de cabeça pensante, identidade e sentido do humano. As escolas deviam ser células de resistência a tal tendência, porque o próprio conceito de escola idealmente carrega em si esta noção, a concepção de que uma paideia é a “epopeia” multidimensional cujo objectivo basilar é construir o ser humano para estar à altura da sua própria humanidade. Pensar na actual dinâmica ministerial e na própria lógica de gestão interna de muitas direcções é constatar com horror a subversão total de princípios que, no domínio educativo são sagrados – excepção notável tínhamo-la neste agrupamento, na pessoa da anterior Directora, a professora Manuela Esperança, a quem aproveito para, oportunamente, prestar os meus agradecimentos sinceros. Aproveito o mesmo fôlego para agradecer à professora Paula Andrade, que concebeu a ideia de uma homenagem da Biblioteca da EB 2+3 de Telheiras nº 1 à professora Ascensão Teixeira, intenção na senda da qual posiciono este meu texto.

Ora, nesta paideia é da maior importância a consciência da pessoa humana, de que, sendo nós “pedras vivas” de uma catedral metafórica, não somos apenas pedras, não somos de “usar e deitar fora”. Perdoe-se-me a ousadia de dizer tal coisa num tempo em que afirmações desta natureza são literalmente censuráveis – e por isso frequentemente censuradas -, mas no quadro desta consciência figura, entre os princípios primordiais, o da gratidão. Gratidão para com as pessoas que trouxeram a concretização desse ideal de luz e arte viva ao ponto de concretização presente, de que somos herdeiros -  mais poderia discorrer sobre a doença institucional corrente, irrupção crónica quiçá, mas tenho vindo a aprender, para minha decepção, de que arengar com instituições é, tantas vezes, como pregar o evangelho aos leões e que mesmo os mais cuidadosos e enciclopédicos sermões expondo caudas, chifres, dentes e tridentes raramente acham convertidos entre os diabos, como o Padre António Vieira poderia confirmar. Direi apenas (ainda que a verve me ferva de sobra para umas centenas de linhas) que, faltando em tempo útil, após a morte só pode a gratidão ser manifestada através da lembrança, da tomada de consciência do nosso lugar como fruto do lavor de outrem – falo, nestas circunstâncias da professora Ascensão, mas tal dizer quase poderia ser slogan aforístico pela frequência com que teria de ser repetido para cada caso que nele se enquadra.

Pergunto, portanto, que direito temos nós de esquecer? Numa situação como esta, em que somos confrontados com a morte de alguém, seja qual for o tipo de ligação existente entre nós e a pessoa falecida, como podemos nós arrogar-nos o direito de evitar a dor, de evitar considerações sobre a mesma, de evitar, como diria um inglês, “to dwell on it”? Tal questão, quando falamos, ademais, de alguém que contribuiu com tantos anos de dedicação total para um projecto nobre de ensino e, por isso, para o bem de uma comunidade que é a nossa, só pode ter uma resposta: devemos lembrar, não esquecer. Esquecer o respeito e a gratidão devida é um outro tipo de morte, uma morte ética nossa, uma grave traição de valores. Esquecer é, não só uma traição de valores como uma abominável, uma indizível cobardia. É certo, em face da dor, da perda, o homem precisa de aprender a “seguir em frente”, a não desistir, por sua vez, de viver. Mas não é a isso que me refiro, não me refiro a encarar a dor e, a seu tempo, ser capaz de continuar, por muito que custe; refiro-me (e denuncio), isso sim, à recusa de lembrar, à recusa de entabular este honesto (e necessariamente doloroso) diálogo com o significado da morte e da perda, à procura de uma evasão ao peso que tal acarreta. E, sobretudo, refiro-me, ao nível já não do fenómeno do colectivo como grupo de pessoas individuais, mas ao fenómeno do colectivo impessoalizado da instituição que se traduz num descartar das pessoas que passam como se fossem peças fora de jogo num tabuleiro de xadrez.
É, certamente, desconfortável para certas conjunturas relembrar o quando se deve a quem desaparece, porque isso evidencia os buracos no tecido roto dos que vieram depois. Diria que, por isso, a actuação das instituições face às “pedras vivas” que vão perdendo é a medida da sua saúde – do que se pode concluir que certas instituições andam mesmo mal de saúde e que a culpa, tão frequentemente, não é do ideal, o ideal não faliu, quem está falido é quem devia encarnar esse ideal e se confessa por omissão. Nada mais eficaz na distinção do trigo do joio e, por desconfortável que seja, é bom as pessoas que dão forma a instituições do cariz de uma escola se lembrem de quem as fez, se lembrem, anões que todos somos, aos ombros de que gigantes andamos, seja qual for a esfera e a dimensão em que tal fenómeno se verifique. Sob pena de, é claro, nada mais permanecer do seu valor original de ideal do que a tristeza de uma sátira.

Mas basta disto, eu disse que não tentaria pregar evangelhos a leões nem converter peixes. Resta-me, portanto, fazer aquilo que é mais importante e exortar a que nos lembremos sempre, sempre, sempre da Professora Ascensão Teixeira. Guardemos sempre grata memória de uma pessoa que nos deu tanto, que tanto teria ainda para nos dar e, sobretudo, daquilo que nos deu e que ainda não soubemos descobrir no seu legado pessoal e profissional. Se é irreparável a dívida de gratidão que temos, quer o saibamos, quer não, menor não é a extensão dos gestos que não tivemos e das palavras que não dissemos. Somas as horas, foram poucas. Guardemos isso também na memória, não vacilando perante o peso desse encargo. Saibamos guardar, por honra e hombridade, o exemplo de uma mestra formidável cujo caminho se pautou, para usar expressão de poetas, “pela soma das virtudes”, pela dedicação e abnegação totais, por uma generosa entrega aos outros – enfim, por tudo aquilo que deveríamos ter sido ensinados a admirar como o summo bono do nosso desenvolvimento humano. Desejo apenas que saibamos nunca esquecer uma pessoa que era genuinamente boa no sentido mais profundo da palavra, que encontrava sempre uma gentileza para fazer a alguém, uma palavra amável para dizer, que jamais abandonava os seus princípios ou afrouxava na sua determinação de os observar e defender. Uma pessoa, de novo devo dizer, que nos deu o melhor de si e merecia o melhor de nós – cuja memória merece o melhor da nossa lembrança.


Aqui chega, ora, ao fim a viagem de lembrança através da qual me propus conduzir-vos. Se muito ficou por dizer, tal se deve ao facto estar além das minhas capacidades de expressão, ou ainda por fazer parte daquelas lembranças que não conseguimos deixar de guardar em silêncio apenas para os olhos da nossa própria memória. Mas talvez o que ficou omisso fique melhor assim, por ser impossível de exprimir, por estar para além, em significado e impacto, de qualquer expressão. Porque há coisas que não podem ser ditas, apenas sentidas e, sentidas, só encontram voz no silêncio.


Lisboa, Setembro de 2013 – 9 de Outubro de 2014
Tomás Vicente

06/10/14

Nova edição de "Os Fazedores de Letras" - Nº 77


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