31/10/13

Contos Contados 4: "O Feijoeiro Invejoso

O Feijoeiro Invejoso
Em tempos, numa velha casa de campo que caía aos bocados, vivia um agricultor igualmente velho e decrépito que também caía aos bocados, facto de que era prova a sua reduzida e maltratada dentição.
            O velhote gostava muito de feijoeiros – muito mais do que gostava de qualquer outra planta, vá-se lá saber porquê – e, como tinha um grande quintal, ocupava sempre metade do terreno com eles. Achava-os curiosos e muito engraçados, com as suas folhas cerradas e os seus retorcidos caules verdes, numa marcha ininterrupta em direcção ao infinito, enquanto durava a sua curta vida. Embelezavam-lhe o quintal, constituindo um pequeno maciço de trepadeiras que rapidamente tapavam qualquer indício remanescente dos paus que lhes serviam de apoio.
No ano em que começa esta história, o idoso, decidindo que a velhice lhe dava uma certa liberdade, cometeu uma pequena e inofensiva extravagância: semeou feijoeiros por todo o quintal, espalhando sementes em cada bocadinho de terra, o que resultou, quando os feijoeiros cresceram e se tornaram vigorosos, numa verdadeira floresta. Os vizinhos diziam-lhe que não era prudente descurar o cultivo de outras plantas para se dedicar totalmente aos feijoeiros, para o caso de a sementeira não dar frutos. Mas o velhote apenas se ria e respondia que os plantava para lhe adornarem o jardim. Mas os seus vizinhos, por muito sensatos que fossem, até nem tinham muita razão, uma vez que ele reservara para os outros vegetais todas as outras porções de terreno que possuía, aqui e acolá, e não tinha com que se preocupar, nesse aspecto. Ali, no seu refúgio, só queria feijoeiros e, pensava ele, daí não viria mal nenhum ao mundo…

O tempo foi passando e os feijoeiros desenvolveram-se tal como seria de esperar. Eram, na sua generalidade, plantas calmas e de bom humor que dirigiam, sem pressas, as suas hastes para o alto das canas onde se apoiavam para a árdua subida. Atingir o topo era o único objectivo que tinham na vida e contentavam-se com ele.
No entanto, havia um que era diferente dos outros. Era um pequeno rebento de feijoeiro nascido num canto do quintal do velho, onde a luz não abundava. Ninguém sabe se foi essa falta de luz que a afectou, ainda nos seus primeiros dias, mas essa minúscula plantinha sentia uma enorme vontade de superar os outros em tudo, coisa que nunca dá bons frutos. Por isso, apesar de ao princípio ser pequeno e insignificante, depressa deixou os seus irmãos muito para trás. Nas redondezas, todos os animais e plantas se admiravam com o seu rápido desenvolvimento e todos falavam sobre o assunto, aplaudiam e lhe davam ânimo. A jovem planta inchava de um orgulho secreto.
Porém, a admiração que todos passaram a nutrir por ele devido aos seus feitos depressa esmoreceu, porque o feijoeiro se tornou mal-humorado e começou a tratar altivamente os seus congéneres. Devido a isto, tornou-se rapidamente o motivo de risota dos outros, que, entre incomodados e ofendidos pelo avanço que ele lhes levava, não deixavam passar em branco uma única oportunidade que se lhes apresentasse para inventarem uma boa dose de piadas maldosamente inocentes e amplamente justificadas, sobretudo depois de descobrirem os sonhadores desejos do seu irmão de sementeira. É que ele tinha aspirações mais ambiciosas…mesmo muito ambiciosas…
Certo dia apanharam-no a confidenciar aos seus botões os sonhos mais profundos do seu coração, falando em voz baixa, julgando ter o seu íntimo como único ouvinte; ouvinte esse que, decerto, guardaria, fielmente, segredo de tudo quanto lhe dissesse. E o pobre tolo ambicionava tantas coisas que lhe deu matéria de gozo para muito tempo!
Grande parte - se não todas- dessas imprudentes ambições estava, naturalmente, fora do seu alcance: ora desejava voar como um falcão, ora queria ser alto e robusto como um choupo, ou ser tão sábio como um mocho, ou…já estão a perceber? Pois, era mesmo isto que ele estava a dizer de si para si quando foi escutado e, pior ainda, admitiu também ter muita inveja daqueles que possuíam tais dons. Quando se apercebeu da atenção extra que recebia, já era tarde demais. Os seus irmãos feijoeiros correram a espalhar o que tinham ouvido e, dentro em breve, todos os seres vivos das redondezas riam a bom rir.
Diga-se de passagem, foi um grande erro gozar a pobre planta, pois não há nada mais prejudicial do que fazer pouco de alguém dado à altivez por algo tão inofensivo, uma vez que, na maioria das vezes, tudo poderia não passar de um devaneio ambicioso nunca posto à prova, se não fosse ridicularizado e, consequentemente, nunca originaria mal nenhum e até o próprio se esqueceria, com o tempo, de tão tolas aspirações. Mas, infelizmente, a sensatez não abundava por aqueles lados e o feijoeiro tornou, deste modo, o principal motivo de zombaria das imediações.
Aconteceu então que passou então a ser conhecido como Feijoeiro Invejo, epíteto que veio substituir o de Trepa-Tudo, nome carinhoso que lhe haviam dado quando começara a demonstrar as suas grandes proezas no que ao rápido crescimento diz respeito. A inveja começou então a aumentar de intensidade dentro da tonta plantinha, que já não tinha qualquer domínio sobre si própria.
Certa vez, não aguentando mais esperar pelo dia que não chegava e que lhe traria a realização de todos os seus imprudentes desejos, decidiu perguntar à coruja sábia como poderia, pelos seu próprios meios, alcançar os seus intentos. Muitos animais e plantas ouviram o que ele disse e a sua risota foi tal que o feijoeiro sentiu-se gelar por dentro, desejando esconder-se no mais fundo buraco da terra, longe da vista de todos. A coruja, bondosa e sabida, não se riu e respondeu:
- Não, filhinho, não há maneira de alcançares o que desejas ou, se há, eu não sei. Lamento.
Assim terminou a conversa, mas a troça que fizeram dele não abrandou ainda durante muito tempo. Por isso, a sua inveja transformou-se em raiva e a raiva transformou-se em ódio. Esse ódio tornou mau o que dantes era de uma revolta quase sem malícia.
Os dias foram correndo e a plantinha imprudente sentia as suas entranhas contorcerem-se cada vez mais rancorosamente. Queria atingir, a qualquer custo, aquilo pretendia. Por fim, quando percebeu que nunca lhe seria possível realizar as suas loucuras, a sua ira foi tal que só pensava em destruir, de algum modo, a tranquilidade daqueles que usufruíam daquilo que ele não podia ter. Pensou longamente, misturando no mesmo caldeirão astúcia, a qual ele possuía em pequena quantidade, e loucura originada pelo ódio, coisa que agora já tinha em abundância. Por fim, decidiu o caminho a seguir, fazendo o que melhor sabia fazer, crescer…

Um dia, o grande e alto choupo acordou espartilhado por uma resistente trepadeira que subia afincadamente por ele acima: era o pequeno feijoeiro. A amargurada planta tinha-se esticado tanto quanto lhe era possível. Ultrapassado o topo da sua esguia vara de apoio, rastejara pelo chão até à base do choupo e começara a trepá-lo. Estava uma noite escura, as estrelas não brilhavam e a lua dormia também, dando cobertura à progressão dos planos da furiosa plantinha. Assim, quando amanheceu, já o feijoeiro ia muito alto, agarrado ao tronco da pobre árvore com todas as suas forças.
Daí em diante, deu livre curso à sua maldade e à raiva que o consumia; derrubou o ninho do falcão e a casa da coruja sábia e causou prejuízos a todos quantos viviam nos ramos do choupo - e até à própria árvore, enfraqueceu devido ao parasita. Sem se dar conta, o feijoeiro caminhava também para a própria desgraça.
Apesar de ter dado largas ao seu mau génio através de todas estas patifarias, quando chegou ao topo, a sua desilusão não tinha limites. Não lhe era possível encontrar consolo na desgraça dos outros nem sentia aplacada a sua fome de vingança…apoderara-se si um grande e aflitivo vazio. Mas não teve tempo para pensar muito no que fizera e, eventualmente, arrepender-se, pois a árvore, que já era idosa, minada pelo parasita e desejando pôr termo à maldade do feijoeiro, ordenou às suas raízes que deixassem de oferecer resistência e, dias depois, quando veio o primeiro vento forte, tombou, esmagou a trepadeira e caiu na horta onde proliferavam os feijoeiros. Parece que, daí em diante, o velho agricultor não mais os semeou, alegando que davam azar.
   
 Tomás Vicente (ex-aluno)