29/08/13

Opiniões Cinéfilas - "Tristão e Isolda"



A bela lenda de Tristão e Isolda, tardiamente incorporada no grande ciclo arturiano, era, originalmente, uma história independente. Como saberá qualquer pessoa que se interesse por tais temas, a lenda narra a história dos amores de Tristão, sobrinho órfão do rei Mark da Cornualha (ou filho deste, de acordo com algumas versões da mesma), pela esposa que ele mesmo conquista para o seu tio, Isolda, a lindíssima filha do rei da Irlanda, que a seguir conto em resumo...

Os temíveis guerreiros do rei irlandês faziam numerosas incursões pela costa oeste da Grã-Bretanha, comandados pelo temível Morholt, um guerreiro com fama de invencível (além de bruto, violador e assassino, mas essa é uma parte que só fica subentendida nesta cristalina história de cavalaria), que sujeita os reis bretões a uma humilhante submissão, que implicava tributos em escravos. 

Acontece que o reino de Mark não era excepção e este era assediado por irlandeses todos os anos, até que o seu sobrinho Tristão se resolve a enfrentá-los e, depois de algumas peripécias, derrota e mata o Morholt da Irlanda, tio (ou prometido - mais uma vez é variável este "parentesco"), mas é ferido por uma lâmina envenenada. Os seus amigos e familiares, julgando-o morto, lançam-no ao mar num barco, que acaba por aportar na Irlanda. Aí, é recolhido pela princesa Isolda, que passeava na praia (estou a improvisar nas passagens de que já me não recordo tão perfeitamente...ou, pelo menos, estou a romantizar), a qual se apresenta, com a sua serva Bragnae, como filha de um senhor feudal (?), nunca revelando que é filha do próprio rei, e trata Tristão, pois é dotada em artes curativas. 

Mais tarde, quando o rei da Irlanda pretende contemporizar com Mark da Cornualha, Tristão vem reclamar a filha do rei para o seu tio e, no regresso descobre que esta era a sua amada. Decide evitar Isolda e entregá-la a Mark, conforme a sua honra o ditava, mas ambos bebem, acidentalmente, uma poção de amor involuntariamente servida por Bragnae, e não conseguem resistir ao amor que os une, o que provoca a ira do rei da Cornualha e...bem, já revelei demais.

É esta a história que conta o excelente filme de Ridley Scott, no qual o rei da Irlanda é apresentado, ao contrário das versões antigas, como um bandido sem honra que pretende à força tomar o que não é seu e acaba morto (ena! este período saiu-me bem...fez-me lembrar a badana do Memorial do Convento: "era uma vez (...) um padre que queria voar e morreu doido.") e onde os amantes...pensando bem, vejam o filme, depois falamos do que acontece a seguir.

Tomás Vicente

23/08/13

Opiniões Cinéfilas - "Um Anjo para May"



Na tarde do dia 25 de Setembro último, passei por uma daquelas "experiências cinematográficas" que, pela sua excelência, são raras! Foi ao ver o filme Um Anjo para May, que nunca antes tinha visto. Ao acaso, abri a televisão e, atraído pelas primeiras cenas, fiquei a ver. Nem sequer vi o início do filme, mas deduzi a trama, pois havia muitas referências a acontecimentos anteriores na acção que permitiam reconstituir a sequência lógica do filme.

Não farei uma sinopse, por duas razões: primeiro, porque o tempo escasseia e tenho uma consulta daqui a cerca de uma hora; segundo, porque nada do que eu possa dizer será digno de tão belo e não fará jus à excelência da história.

Este filme exprime bem o poder do tempo. O nosso tempo é nosso para o dedicarmos a quem e ao que quisermos, para defendermos as nossas causas e as "nossas verdades". Devemos usá-lo bem. Neste filme, o tempo é o senhor de toda a trama, quando um rapaz normal da Inglaterra rural viaja cinquenta anos para trás no tempo, em plena Segunda Guerra Mundial, e é acolhido numa família de boas pessoas, mas com muitos problemas e que enfrenta um caminho muito difícil. Samuel Wheeler é um quinteiro que recolheu uma criança que ficara órfã no início dessa mesma guerra, a qual ficara psicologicamente afectada pela morte da sua família, juntamente com a qual ficara soterrada nas ruínas da casa onde morava. May, que não entra nunca em casa nem come à mesa, por medo de estar sob um tecto que lhe possa cair em cima, descobre no "viajante do tempo" um amigo sincero, que a ajuda, gradualmente, a reintegrar-se na sociedade e a reaprender a viver.

Mas, quando tudo parecia finalmente estar a encaminhar-se para um final feliz e o rapaz volta ao seu tempo, descobre que, dias depois da sua partida, uma bomba tinha destruído a casa dessa família e tenta remendar o mal que fora feito, viajando de novo no tempo e deparando-se com descobertas chocantes...como o facto de uma velha mendiga semilouca que ele sempre gozara ser a versão idosa da sua amiga May, depois de a casa de Wheeler ter sido destruída. Volta ao passado e remenda (algumas) coisas e depois, já no seu mundo, de novo, reencontra May, lançada na vida que ele lhe restituíra...um valiosíssimo testemunho sobre o poder do tempo. Tempo! Tempo! Moves montanhas!

Tomás Vicente

15/08/13

Medo de Amar


É preciso perder o medo de amar. Acho que nos apagamos todos gradualmente, submergidos por convenções e restringindo a nossa liberdade e expressividade emocional por padrões estéreis. É preciso dar a volta a tal coisa, antes que percamos a nossa humanidade - há discórdia entre os filósofos acerca do que nos diferencia dos animais; quanto a mim, longe de ter a chave para o consenso, parece-me que partilho da opinião de Mark Rowlands, autor de O Filósofo e o Lobo: não somos assim tão diferentes. Mas aquilo que nos põe num patamar especial (ainda que não saibamos se somos os únicos seres disso capazes) é a capacidade de amar, de nutrir por outrem "sentimentos elevados".

Acho que nos deixamos amodorrar. Parece que, às vezes, perdemos até a capacidade de sentir aquilo que dizemos sentir, sentimos mais com a cabeça que com o coração. E é tudo mais movido por interesses e levado pelo vento. Ah...dizem que o mundo tem evoluído muito nos últimos século...em termos cognitivos, decerto; no que toca a termos emotivos, já é diferente, acho que éramos bastante mais "livres para sentir e amar" em épocas como a Idade Média. Talvez porque o contraste entre Bem e Mal nos permitia, então, distinguir bem as duas coisas, o amor do ódio e da crueldade, e, assim, optar mais solidamente por um ou por outro. Agora, há demasiadas subtilezas em tudo, demasiados subterfúgios e saídas de emergência para todas as situações, demasiados escapes pessoais, demasiada procura de conforto, demasiado egoísmo e cobardia...tornamo-nos, como civilização, gradualmente como aquele heterónimo de pessoa que não se permitia amar porque recusava sofrer. Meus amigos, se vamos por este caminho, vai deixar de haver esperança na e para a Humanidade.

Tenho que confessar que, até certo nível, começo a antipatizar com a expressão "eu gosto". Empregamo-la para tudo (mais uma vez se vê aqui a importância da língua: uniformização dos vocábulos empregues pressupõe uma amálgama e uma confusão entre os conceitos por eles expressos): para coisas, para ideias, para pessoas, para valores. Não pode ser. Há que perceber o que é gosto e o que é algo mais. Eu gosto de coisas. Sim, é um facto. Mas eu amo pessoas e valores: não gosto de uma pessoa como de um utensílio. Se começamos a confundir na expressão, confundimos no sentimento e esquecêmo-nos das diferenças. Gostar é muito superficial.

Ainda se diz (também, outra coisa quereria dizer que estamos muito mal) que se "ama" uma namorada/mulher ou, se for uma rapariga a falar, um namorado/marido. E até isto começa a esbater-se, lentamente. Já ninguém ouve dizer, comummente, "eu amo os meus irmãos" ou "eu amo os meus amigos". Porquê? Bem, pessoas retardadas começariam aqui a defender-se dizendo que, sobretudo esta última forma seria uma prova de homossexualidade subjacente. Tolices. Lembro aqui o livro de C.S.Lewis, grande filósofo inglês, The Four Loves. Para mim, há também diferentes tipos de amor: amor "sensual" (marido/mulher, namorado/namorada), amor "familiar" (dentro deste especificaria eu o "amor fraternal" e o "amor/devoção a familiares de gerações mais velhas ou mais novas"), o amor "ao colectivo" (que devotamos à humanidade em geral) e, por fim, a amizade. Sim, todos estes são tipos diferentes de amor, mas todos o são. 

Antevejo particular polémica no caso da amizade. Na verdade, é pena que esta estirpe de afecto profundo tenha caído quase no esquecimento, pois é um dos suportes da nossa integridade enquanto seres humanos. Curioso é verificar (o que reforça o que disse acima) que ao deixar-mos de afirmar afecto em relação pessoas que colocamos na categoria de amigos, tenhamos também desaprendido como é que isso se faz. Olhando à minha volta na escola vejo que a maior parte das pessoas já não sabe muito bem o que é a amizade. Não é algo circunstancial nem ocasional - muito menos interesseira! É algo perene e constante, uma base confiável. É melhor começarmos a pôr de lado os preconceitos e a ver com olhos de ver e a valorizar mais as pessoas e os valores em si mesmos. Afinal, no man is an island, mas também não somos bolas de ping-pong que correm de arquipélago para arquipélago! Não somos ilhas, mas somos unos em nós mesmos, logo devemos ser íntegros e não ter vergonha do nosso próprio coração!

Acho que não me poderia explicar melhor se disse mais, por isso, aqui fica apenas o meu desafio para gostarmos com mais intensidade e para perdermos os preconceitos que nos tornam ocos. Lembrai-vos todos: o que conta não é o que a mentalidade dominante pensa sobre nós mesmos e sobre a maneira como sentimos e como amamos. Todos temos de escolher entre fazer o que é certo e o que é fácil. É fácil ir na onda, cingirmo-nos a certos padrões; mas, pensando mais além, não colheremos frutos melhores se fizermos aquilo que realmente devemos fazer e que nos torna melhores pessoas? Percamos, pois, o vício de permanecer no limbo do gostar, entremos no num domínio mais profundo e percamos, pois, o medo de amar!

08/08/13

Residuais do Blogue "Palavras à Solta" - 6

III

Desfiguração

A caneta renega as letras,
O lápis renuncia ao movimento, em protesto;
O papel geme quando se lhe escrevem
As ásperas barbaridades
Que agora proliferam.

Desde sempre foram eles
Companheiros fiéis da mão que escreve,
Mas instrumento algum pode ainda dançar
Sobre a alvura das folhas lisas
Porque dor imensa lhes causa
A desfiguração da língua que amavam.

Esta é agora insípida, não existe
Porque não a determinou o tempo e as gentes,
Antes um pequeno número
De néscias assinaturas
Sobre um infame tratado
Que se destina a, como no mundo é frequente,
Descurar o que é certo
Em prol dos interesses de alguma cobra
Que, secreta, se aventura no ventre da noite
Para a coberto do secretismo
Desferir o cobarde golpe.

No entanto, o que não existe é volátil,
Instável como um castelo de cartas
E um certeiro e suave golpe de vento
Pode derrubá-lo a qualquer altura.

Assim, lápis e caneta,
Papel e aparo, bloco de notas,
Borracha e marcador
Cobrem-se de altruísta submissão
E esperam, encobertos pelo véu da razão,
O dia em que o feio castelo de cartas
Caia redondo no chão
Para em seu lugar erguerem
Outro que, de direito, se erga
Sobre as enseadas marítimas
Onde ainda, trazidas na crista das vagas,
As mudas consoantes murmurejam
As canções de quem não é ouvido
E os hífenes ligam o Rei do castelo
Ao povo nas areias do olvido.

Mas o Rei dar-lhes-á dignidade
E maiúsculas altivas para, se assim desejarem,
Mudarem o que não estiver bem,
Deixando, no entanto, ao tempo
O que aos séculos pertence.

Resta agora saber
Se o tempo matreiro
Terão os detentores de tal esperança
Por fiel companheiro.

Também quem escreve sofre,
Vendo que, por serem cobardes e saberem
Que há muitos que o não são,
Fizeram sair a língua portuguesa
Discretamente pelos bastidores,
Pondo outra decrépita em seu lugar,
Por saberem que, saísse ela pela porta da frente,
Muitas vaias justas os perseguiriam
E haveria alguém que aferrolhasse a entrada
Antes da triste saída dela.
Mas o poeta está triste demais
Para fazer como seus apetrechos
E esconder a eruptiva alma incandescente
Por detrás de uma cortina de cinzas.
Ademais, o poeta morrerá em breve,
Ainda que vivo fique o corpo humano,
Se apartado for da sua musa,
Enquanto os instrumentos da Palavra
Podem aguardar a eternidade.

Restar-lhe-ia, assim, procurar outra musa
E usar esta nova defeituosa ferramenta
Até a antiga primorosa – ou outra nova –
Encontrar.

Mas a sorte também piedosa se pode mostrar,
Cuidando que, se a conhecida musa
Não lhe devolver a tempo de o salvar,
Fornecer-lhe-á dela uma miragem
Que para ele existirá
Nos profundos sonhos do coração.
Assim guarnecido, poderá esperar
Pelo que o tempo a todos devolverá.
Esperemos pois com ele
E o tempo não falhará
Em devolver o que alguém nos arrancou.

 Tomás Santos


 IV

Sátira ao Professor Malaca Casteleiro

» Diz lá Malaca Casteleiro
De que se faz o teu jardim! «
» De acentos e mudas consoantes
E outras coisas assim![1] 

Mas não é bem um jardim,
É mais uma verde e viçosa horta
Pois, quando o tempo das colheitas
Bate discretamente à porta,

Lá vou eu para a minha horta 
Colher o que lá semeei
E podar os galhos de hífenes,
Que crescem céleres como líquenes.

Tiro também as consoantes de secura textual
Que, ao caírem, quase não se notam,
Só um rumor suave soltam,
De quem abre a seguinte vogal. «

Mas eu acho isto mal, 
Acho que não é coisa natural 
Ceifar-se assim um pomar
Que dá bons frutos das flores a desabrochar;

E ainda acho pior a ofensa
Por ter sido apadrinhada
Por um linguista (linguarudo) de "meia-tigelada" - 
e português! -, que só me merece uma sentença:

Que, gentilmente, sem mais detença,
Se esqueçam os seus feitos duvidosos
E os seus méritos ociosos,
E que do olvido sejam pertença!

Não percebo como pode 
Alguém de tão nobre ofício
Fazer este ortográfico sacrifício
Que, terramoto, o edifício da língua sacode.

Bem sei que as palavras minhas
São de pouca monta,
Como opor ao vento forte as fracas joaninhas,
E que a minha opinião não conta.

Ainda assim, "sábio" professor,
Que, por isto teres obrado, te sei um tolo
E do teu erróneo acordo sei, de cor,
Contra-atacar cada parte do miolo,

Pois a mim ensinaram-me 
Regras de gramática e de ortografia 
E sabiamente explicaram-me
Que superar as regras era só para quem as conhecia,

Digo-te que deste um passo maior que a perna
E meteste-nos o estudo numa enrascada
De uma ridícula e malfadada
Catástrofe interna.

Faço o que digo e, do fundo do peito,
Aqui te deixo, sem reticências
As minhas sinceras, solenes condolências
Pelo trabalho que tens feito!
 Rodrigo Gonçalves









07/08/13

Opiniões Cinéfilas - "Harry Potter"



Ideias pré-concebidas são um osso duro de roer! E podem tornar-se um obstáculo psicológico à aquisição de valiosos conhecimentos ou ao enriquecimento pessoal através de extraordinárias experiências! Ora, eu próprio tive a prova disso no que diz respeito tanto aos livros como aos filmes da série Harry Potter. Em 2001, quando foi lançado o filme A Pedra Filosofal, a mãe de um amigo meu comprou a cassete e vimo-la todos juntos, numa em que o temporal vindo do mar varria a pequena povoação (orgulhosamente auto-proclamada "ilha") marítima, outrora uma vila piscatória, onde passo férias no mês de Julho, desde que me lembro. Nessa altura eu tinha seis anos e já tinha ouvido os meus colegas da primária a falarem sobre o filme, a grande sensação do ano. Todos o achavam fantástico. 

Tenho de confessar que, então, não o quis ir ver ao cinema, porque as descrições me meteram medo. Não tenho vergonha de admitir que, então, eu era extremamente medricas (mais do que a pouca idade de então justificava) - digo que não tenho vergonha de o admitir porque agora já não o sou. 

Nessa noite de temporal, reunimo-nos todos ao serão para ver (ou, para alguns, rever) o filme e envergonho-me (isso sim) de admitir que, a maior parte do tempo, tive os olhos fechados e apenas fui espreitando por entre os dedos, depois de perguntar se era "seguro". Anos mais tarde, apercebemo-nos do quão ridículos somos. Enfim, coisas da vida. Por aqui se vê que, por medo de conhecer, por medo dos medos, durante os primeiros tempos, não tive qualquer tipo de admiração por Harry Potter. 

Mas o destino prega-nos sempre partidas (e ainda bem que posso dizer que, pelo menos culturalmente, nem sempre são más) e este estava determinado a mudar a minha opinião. Assim aconteceu que a minha tia, que mora no Luxemburgo, me ofereceu, um dia, os quatro primeiros volumes da obra-prima de J.K.Rowling. Durante muito tempo (e mais uma vez, se me tivessem visto nesses tempos, as pessoas que agora me conhecem relativamente bem teriam notado a ausência de uma das características que em mim é mais acentuada), eu nem sequer gostava de ler, quanto mais ler Harry Potter. Mesmo quando comecei a ler, a minha curiosidade não me puxou para eles e os volumes foram ficando na estante, a apanhar pó. 

Em 2007, já a minha mãe tinha começado a dizer-me, acerca deles, uma frase que sempre foi muito do seu agrado: se não os vais ler, o melhor é dá-los. Mas, quando, em Julho desse ano, fui de férias para a mesma casinha alugada na praia, já a leitura era uma constante. Assim, numa reviravolta de 360º, nesse mês esgotei as minhas reservas de livros e, quando a minha mãe veio a Lisboa, a meio da temporada, vim também, para ver o que podia levar para ler. Depois de escolher mais alguns, parei a olhar o presente da minha tia...e, pela primeira vez desde que os recebera, deitei a mão aos primeiros e levei-os comigo. 

Por volta de 15 de Julho, num dia cinzento (sim, cinzento e chuvoso!), comecei a ler Harry Potter e a Pedra Filosofal e logo as palavras iniciais despertaram em mim uma atracção singular: "(...) Quando o senhor e a senhora Dursley acordaram, na manhã cinzenta e pesada de terça-feira em que começa a nossa história..." E assim li o livro em quatro dias. Desde aí, não mais parei e, quando as férias de Verão terminaram, em Setembro, já eu estava bem lançado no quinto volume, Harry Potter e a Ordem da Fénix, e, uma vez chegado às férias de Natal, li o sétimo (saído em Outubro desse ano) numa semana de intensa leitura. Nunca mais me esqueci do efeito que essas histórias tiveram em mim e, de vez em quando, abro um dos volumes numa página ao calhas (outras vezes, à procura de um momento em particular) e começo a ler. Harry Potter foi a obra que me fez amar a leitura. Eu já lia muito, mas lia freneticamente e, muitas vezes, nem sequer deixava o espírito respirar o enredo. Com os livros de Mrs. Rowling, pela primeira vez experienciei aquela arrebatadora sensação que nos percorre quando encontramos um livro de que realmente gostamos: queremos ler tudo e não nos levantar do sofá até termos chegado à última página e, ao mesmo tempo, queremos que a história dure tanto quanto possível. 

Não fui - não exactamente - transportado para o mundo do livro. Antes passei a reconhecer o livro no meu mundo; em vez de saltar para dentro do caldeirão da magia, fiz o caldeirão transbordar e inundar a minha realidade. Esse é um dom raro, e a criadora do jovem feiticeiro de óculos redondos e cicatriz em forma de raio possui-o (à semelhança de Tolkien): permite-nos ver magia à nossa volta, em actos e coisas que sempre lá estiveram e que, até então, havíamos considerado sempre banais.


Assim, é com satisfação que aproveito para escrever também sobre os filmes produzidos com base nestes maravilhosos livros (desfaço-me de curiosidade só de pensar que teremos de esperar até, pelo menos, 2017 para saber o que Rowling dará ao prelo a seguir!). Sim, porque depois de ter ficado fã dos livros, tornei-me fã dos filmes, que captam, na perfeição, a atmosfera engendrada por J.K.R.

Tenho uma predilecção pelo primeiro e pelo terceiro filmes, bem como pelo oitavo (não esqueçamos que o último volume deu, justamente, dois filmes). Depois de tanto ter dito sobre os livros, acho-me com pouco fôlego para falar dos filmes, apenas porque as qualidades são as mesmas. Devo referir que os actores escolhidos encarnam perfeitamente as personagens que lhes couberam e souberam dar profundidade e credibilidade à representação de "pessoas literárias" tão complexas e completas. Só mesmo actores ingleses.

É impossível para aqueles que realmente gostaram dos livros não se sentirem voar nas asas de um sonho de infância ao verem cenas como a chuva de cartas que atinge a casa dos tios de Harry no primeiro filme, ou Ron vomitando lesmas no segundo, bem como a fantástica cena, mostrada no terceiro volume, de Harry voando em Buckbeak

Tal como acontece com os livros, os filmes vão crescendo em complexidade psicológica das personagens, das situações, etc, construindo assim uma segura gradação, que nos conduz a uma apoteose que culmina com a Batalha de Hogwarts.

Não posso explicar-me melhor ou transmitir mais eficientemente o encanto da história, por isso, encurtando um discurso que já vai longo, digo apenas: leiam os livros, vejam os filmes, e vão perceber tudo o que eu disse e tudo o que eu não consegui dizer.

Tomás Vicente

01/08/13

Residuais do Blogue "Palavras à Solta" - 5

Aqui republicamos os poemas escritos por alguns nossos antigos alunos acerca da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, como seguimento à fina ironia crítica do professor Joaquim Marques.

I

A Língua Mutilada

A minha pobre Língua
Está a ser duramente atacada,
Sem dó nem piedade.
Mutilada.

Ó Língua Portuguesa,
Coitada de ti,
Que és ferida por muitos gumes.
Coitados os que te prezam,
Pois sentem-se fervilhar
De angústia e raiva!
Ultraje!

Quem são os inimigos nesta guerra?
Isso não sei ao certo, não o posso dizer.
Apenas sei que são muitos,
São néscios e matreiros,
Deslizam nas sombras da ignorância
E acoitam-se nas trevas impenetráveis
À espera da tua noite,
Que rápida chega.

Como pôde isto acontecer?
Isso é mistério maior
Que a minha arte de adivinhar,
Pois ainda hoje estou para saber
Como conseguiu o Acordo triunfar.

Onde já se viu isto?
A nossa nobre língua transformada
Num monte de ortográfico lixo
E para sempre à calinada condenada!?

E que fiquem sabendo
Que o “p” e o “c” nunca hei-de separar!
E outros erros vergonhosos
Não irei, silencioso, aceitar.
E, se o meu grito de guerra
Não chegar aos ouvidos certos,
Que fique, ao menos, rouco de tanto gritar!


Com essas e outras palermices
Não hei-de eu concordar
E, como disse o esperto Aleixo,
A razão, mesmo vencida,
Não deixa de ser Razão!
 Ricardo Valente


II

Perguntem ao Verbo!

Mentem aqueles que dizem
Que estranhas deformações
Infligidas ao nosso Português
Não são mais que necessárias correcções;

Gostava de saber onde vai isto parar
Se a sério tomam todo o indivíduo
Que sua teoria não sabe fundamentar
Nem aquilo que já existe aceitar.

Gostava de saber onde vai isto parar
Se já por verdade da língua se toma
Aquilo que alguém inventa
Em obscuras horas ociosas.

Já não sei o que mais pode piorar
Se deixamos disseminar
Incoerentes ideias
De pessoas que se perdem nas próprias teias
E que nem ao verbo sabem perguntar
O que a seguir hão-de colocar!
 Ricardo Valente