09/11/13

Contos Contados 5: "A Pêra e o Pombo"

A Pêra e o Pombo
Há muito tempo, numa região de verdejantes campos férteis onde floresciam muitas espécies de plantas e as colheitas amadureciam calmamente, banhadas pelo sol meigo e aconchegante, existia um grande pomar onde abundavam, entre outras qualidades de árvores de fruto, laranjeiras e pereiras. Esse pomar era o orgulho das gentes do campo, pois a fruta de lá era mais doce e, quando as árvores se carregavam dessas jóias comestíveis, ficava especialmente bonito e colorido, fazendo lembrar uma grande manta de retalhos.
Esta história começa num qualquer ano esquecido – já nem os ventos se lembram qual foi esse ano, pois muito tempo passou desde que isto aconteceu e, como não gosta de andar sozinho, o tempo levou consigo, como de costume, muitos pormenores de histórias incautas que não se fizeram registar a tempo, sendo esta uma das histórias espoliadas, ao que parece –, na época em que os frutos de todas essas árvores eram colhidos, enchendo muitos cestos. Foram levados para uma vila próxima dali para serem vendidos numa feira que lá se realizava no primeiro domingo de cada mês. Algum tempo depois já toda a produção estava exposta em caixas de madeira colocadas em várias bancas à volta da praça, onde era mantida limpa e com bom aspecto, de modo a atrair quem passasse.
Até então, cada uma daquelas peças de fruta tinha sido bem tratada e fizera a viagem com relativo conforto e uma cómoda sensação de bem-estar. Eram aquilo a que poderíamos chamar sortudas e estavam todas bastante satisfeitas com os cuidados e a deferência que os feirantes demonstravam para com elas, excepto uma das peras mais verdes, que era ainda uma novata ingénua. Além disso, era também um pouco sonhadora e insensata.
Certo dia, essa mesma pêra, juntamente com algumas outras, foi comprada por uma mulher severa, de cenho carregado, que as levou para sua casa dentro de um cesto de verga, tratando-as, a despeito do que se poderia esperar de alguém com aqueles modos, com justa correcção, poupando-lhes moças e outros estragos. Chegada a casa, que se situava num primeiro andar, mesmo por cima de uma mercearia com um toldo às riscas vermelhas e brancas, a mulher retirou as peras de dentro do cesto e pousou-as cuidadosamente numa modesta fruteira.
Nos dias que se seguiram, a jovem pêra viu um número razoável das suas companheiras abandonarem a fruteira, umas atrás das outras, quando a velha se aproximava delas, depois de um modesto jantar, para escolher aquela que nesse dia lhe serviria de sobremesa.
Da posição que ocupava na fruteira, via perfeitamente tudo o que acontecia depois, o ritual que se seguia: o leve arrastar de um pratinho ao longo do pequeno tampo de madeira, onde a velha tomava, sozinha, as refeições, uma faca que era tirada de uma gaveta, o som discreto da lâmina a cortar a casca e a polpa, incentivada pelos cansados dedos da mulher solitária e triste e, sobretudo, o momento derradeiro, em que os despojos da pêra cortada desapareciam na boca da sua anfitriã. A pequena pêra detestava ver aquele espectáculo assustador, prenúncio do futuro que um dia teria. E o que mais a perturbava era o facto de as suas companheiras que permaneciam intactas encararem tudo aquilo com naturalidade e sem se deixarem impressionar pelos golpes da faca, que a lhe pareciam selváticos.
- É o nosso destino. – diziam – As peras sempre foram levadas pelos homens para as suas casas e por eles comidas para sua satisfação… É uma espécie de tradição e as tradições, todas o sabemos, nunca se devem quebrar! – e lá continuavam na delas, sem se importarem com a perspectiva de verem, mais tarde ou mais cedo, a sua vida findar no fio de uma faca de cozinha.
Mas o que à nossa pêra era mais difícil de suportar era que as sementes das suas irmãs que iam sendo devoradas fossem atiradas, juntamente com as cascas, para um pequeno balde do lixo. Achava que todas elas tinham direito a que as suas sementes fossem lançadas à terra para delas nascer uma nova planta, um nova esperança.
- As minhas sementes hão-de descansar na terra! – prometia, enquanto dava tratos à cabeça para descobrir uma maneira cumprir a jura.
Os dias foram passando e a pêra sentia-se envelhecer, sentia o seu corpo a amadurecer e a sua pele a ficar menos rija. As outras peças de fruta iam desaparecendo da fruteira, pouco a pouco, e aproximava-se a sua hora, pelo que, certo dia, tendo a dona da casa saído sem fechar a porta da pequena varanda da cozinha e apesar de todas as advertências das suas companheiras remanescentes, saltou da fruteira, rolou pelo tampo da mesa e depois pelo chão, até à beira da varanda. A última coisa que as suas irmãs lhe disseram, um dos desesperados conselhos que, sendo teimosa, não acatou, foi:
- Olha que não devemos quebrar as tradições!
Ao ouvir isto, algo nela se endureceu e, de coração obstinado, saltou. A queda, no entanto, não foi como ela esperava: rolou ao longo do toldo da mercearia, subjacente ao andar onde morava a senhora de ar severo, mas, como havia um folga razoável no pano, ficou presa nessa depressão terrivelmente macia.
Passaram-se horas e a pêra continuou presa no profundo vale de pano que se formara no toldo. Lá em cima, no céu, passou um pombo – pombos não faltavam na praça! A pêra chamou-o, gritando:
- Ó pombo, ó pombo, ajuda-me! Ajuda-me!
O pombo, que era uma ave oportunista, habituada a lucrar com as desgraças alheias, veio logo ter com ela.
- Jovem pêra, em que dificuldade te encontras? É só dizeres do que precisas que eu tentarei ajudar-te! – disse a ave, derretendo-se em amabilidade fingida
- Ó pombo, eu queria lançar as minhas sementes ao campo para que não fossem parar a um miserável caixote do lixo. Queria dar origem a novas árvores! Mas agora fiquei aqui presa e, se ninguém me transportar até lá, nunca poderei realizar o meu sonho…ó pombinho, ajuda-me… - e desatou a chorar copiosas lágrimas de pêra.
- Claro que te vou ajudar. Deixa-me agarrar-te. – pediu o pombo, fincando na pêra com as suas pequenas patinhas de aguçadas garras, que arranharam a casca da sua passageira, mas esta não se importava, uma vez que a única coisa que lhe ocupava o espírito era a o desejo de chegar a um campo onde pudesse semear a sua descendência.
No entanto, quando a vila e os seus arredores ficaram para trás, ao contrário do que esperava, o pombo não procurou um campo alegre onde a pudesse pousar, levando-a, em vez disso, para uma pedreira onde a rocha nua aquecia debaixo de um sol escaldante. Enquanto sobrevoava a área, disse maldosamente à jovem pêra:
- Tu desejaste ser mais que as tuas irmãs, desejaste a glória de ser a mãe de um pequeno pedaço da Natureza, algo que vos foi negado a todas. Mas eu lançar-te-ei às rochas e comerei as tuas sementes, quando te esborrachares de encontro ao chão! – e largou-a.

Tomás Vicente (ex-aluno)