30/01/14

Um texto de Teolinda Gersão...

Segue abaixo um texto da autoria da escritora e Professora Catedrática aposentada Teolinda Gersão, que o terá escrito depois de ter estado a ajudar os netos a estudar Português...e a nova gramática...

"Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre.
A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, “em casa” era o complemento circunstancial de lugar.
Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”.
Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele?
Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo. No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está.
Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos diretos e indiretos, ou diretos e indiretos ao mesmo tempo, há verbos de
estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos
epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo
e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas.
Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e
assim sucessivamente. No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa. No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no
espaço? A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano
passado.
Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e
astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjetivalização deverbal e deadjetival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.) Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear.
Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redações também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que
estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero. E pronto, que se lixe, acabei a redação - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros. E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática?
Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

João Abelhudo, 8º ano, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática."

28/01/14

Reflexão sobre a escola

Pouco habilitado que estou a discorrer acerca das características da obra de Vergílio Ferreira, rica, variada e, acima de tudo, profunda, opto por, neste texto, procurar refúgio na análise de um seu pensamento, extraído do quinto volume do diário Conta-Corrente, que proponho como mote para a presente reflexão: “Morreremos sem conhecer uma fracção grande de nós. E isto apenas porque ela não teve oportunidade de se manifestar. Eis porque, por exemplo, nem todos sabem de si que são heróis, ou cobardes.”
Num mundo como o nosso, generalizado que está um certo automatismo do homem na vida em sociedade, o qual parece acarretar uma certa fragilidade identitária pessoal, torna-se premente a colocação de certas questões centrais na definição da vida de todo o ser humano
- Quem sou eu?
- O que é a vida?
- Para onde estou a ir?
- De que modo me relaciono com o que me rodeia?
Incentivados, pelos vectores sonâmbulos que parecem dirigir a vivência moderna de se ser com os outros, é da maior importância a construção de uma visão crítica, a estimulação do desenvolvimento assíduo de um questionamento do mundo que nos rodeia e do nosso lugar nele. Tanto ou mesmo mais do que as respostas em si, importam as perguntas, importa abrir os olhos para a descodificação do real.
Neste processo de obtenção de competências para um diálogo com a vida em todos os seus múltiplos aspectos, a escola ocupa o lugar de destaque, sendo o elemento-chave no complexo percurso de despertar para a estruturação de uma consciência individual válida. Tende a ser esquecido, na sangria (des)informativa dos media, um princípio importante que subjaz, como fundador, a noção de escola: ainda que instrução signifique sempre, de algum modo, uma dose de formatação, o facto é que este espaço não se destina, na sua primordial razão de ser, a uma formatação limitadora do pensamento ou à imposição de uma dada dose de conteúdos pré-digeridos, antes tendo em vista a transmissão de um conjunto de conhecimentos fundamentais e, sobretudo, de ferramentas e técnicas necessárias para um contínuo aperfeiçoamento individual, tanto a nível intelectual como a nível humano, aperfeiçoamento esse que nunca está terminado.
Do ideal à prática irá, decerto, uma considerável distância e ainda que nessa distância muito se perca, mas, se é legítimo afirmar que o saber está ou pode estar ao serviço do auto-conhecimento, é nessa distância que o esboço do grande projecto que é viver se concretiza. Neste âmbito cabe, pois, aqui, verbalizar apreço pelo posicionamento da nossa escola como um estabelecimento que pugna, sempre e de modo incansável, pela dedicação dos profissionais que nele trabalham e pela coesão dos elementos constituintes da comunidade escolar no sentido de proporcionar, se não um desenvolvimento prático, pelo menos uma consciencialização para o multifacetado elenco de potencialidades dos discentes que fruem desta instrução, de modo que, se não pudermos todos confirmar que somos heróis, para usar o exemplo de Vergílio Ferreira, possamos, ao menos, constatar que somos verdadeiros homens e mulheres despertos para o conhecimento e para a busca de aperfeiçoamento – e, por tal, humanamente ricos-, o verdadeiro tesouro de qualquer sociedade.
Deste modo, no dia em que se comemora o aniversário do escritor patrono, é preciso dar os parabéns à Escola Secundária de Vergílio Ferreira, uma escola que, como escola que é, não existe em si, antes é concretizada na prática através da acção dos seus elementos humanos, na confiança de que, traga o futuro o que trouxer, tal espírito se perpetue como uma garantia em tempos felizes e como um farol nos dias menos felizes – e sempre, sempre, como uma disciplina de acção.


Tomás Vicente Ferreira (ex-aluno)

[artigo escrito para o número 11/12 da revista Opsis]

Lição de Natação das Lontras!


12/01/14

Um poema sobre a nossa biblioteca

Quando as folhas caem no Outono,
Corando o chão de vermelhos e castanhos;
Quando os campos tombam no sono
E o vento zune nos despidos lenhos
Das árvores, esguios e melancólicos;
Quando o Inverno adormece as terras,
Embalando-a com poemas bucólicos,
Promessas do futuro verde das serras;

Quando a chuva bate os caminhos,
Na esteira do nostálgico viajante,
Sento-me, defronte dos pergaminhos,
Nesta sala quente e aconchegante,
Ouvindo dos livros os doces murmúrios,
Aninhado num fofo e azul assento,
E componho destes versos os augúrios
No segredo do meu pensamento.

O poema é ainda uma música secreta,
Uma fonte que brota silenciosamente.
Não tem outra que não seja a meta,
Escolhida do coração, que livremente
É louvar o que a alma, discreta, ama;
É ainda uma semente, que planta
Se tornará em breve, verde chama
Que dirá ao poeta a verdade do que canta.
Não peço, em loquaz e ledo desespero,
Às belas Tágides do esverdeado rio
Que, divino auxílio, me dêem o que quero,
Nem a nenhum outro deus poético e sadio;
Peço apenas à Natura que, se já o Inverno
Me deu tão generosamente, cantando,
Me dê de vento um suave sopro terno
Para dele se ir meu poema alimentando!

Olho em redor da sala, há muito conhecida
E sempre para o espírito certo conforto,
Porquanto a biblioteca adormecida
Guarda mais que livros, é um horto
De serenas esperanças e de mágicas
Deambulações por esse rotundo universo
De belas, elevadas, seguras e letárgicas
Divagações, que hoje conto em verso!

Que sítio este, baluarte da doce fantasia,
Eterno e eloquente contentamento
Para quem vive num mundo que se extravia!
Sonhar aqui apazigua o espírito sedento
Da liberdade sublime de imaginar,
Uma fome implacável e devoradora
Que, se não caio no erro de exagerar,
É do Homem feroz e dedicada protectora.

Nada de melhor tenho para dar
A um passante espírito amigo
Que a possibilidade de escutar
As recordações que trago comigo
De um lugar acolhedor, magnífico,
Onde realidade e sonho se misturam
Num ambiente agradável e prolífico,
Fervilhante da criatividade que procuram!

Vejo, inspiradoras, à frente dos olhos
Os pequenos gestos do quotidiano,
Memórias saltitantes, aos molhos,
Que me causam alegre deleite quase insano;
Vejo das entradas e saídas a dança,
Frenética e abundante em inocente urgência;
Vejo os sonhos caminhar com esperança
De serem aconselhados com sapiência;

Vejo um professor escrever no livro de ponto - 
- Um ritual, ritmado gesto rotineiro -,
Enquanto ditando, segura, o contraponto
Está a música imaginativa, que, marinheiro
Na crista da vaga, vai, calmante, pelo ar
Ondulando, qual fénix queda no olvido,
Que, pela sala, sempre continua a ecoar
A súplica de um livro que não foi ouvido;

Vejo o dia alongar-se numa tarde serena
E alguém que, lendo, se inclina para o lado,
Comentando que é sempre uma pena
Ver o fim de uma história anunciado;
Partilham-se alegrias e preocupações,
Guardam-se dádivas sublimes e preciosas
Trocam-se ideias, alegremente, e impressões;
Intercâmbio de almas amistosas;

A Biblioteca conta histórias e murmura,
Canta a quem passa trovas divertidas,
Cativando-nos com uma atracção segura;
Ali, num reduto de quimeras vertidas
Para o papel, da ficção um firme bastião,
As paredes cantam, páginas dedilham baixinho
Um harpa de devaneios, que breve eclodirão
Num restolhar de vida e cor, suave burburinho;

Compõe-se assim o meu refúgio maravilhoso,
De pequenos gestos, algum só esboçados,
De ideias, de livros, de sonho deleitoso;
Como são fortes os laços encantados
Que criamos com esta idílica realidade,
Rematada por uma sublime aura desprendida
Das macias páginas dos volumes da humanidade,
Que, com alegria, cantam o mistério da vida!

 Tomás Vicente (ex-aluno)