24/12/13

Contos Contados 2: "Mochos e Corujas"

Mochos e Corujas
Conta-se que tempos houve em que as diferentes espécies animais viviam separadas umas das outras. Cada uma tinha, por assim dizer, o seu reino. Ora, esta história teve lugar num recanto, algures na Europa, onde se localizava o Reino dos Mochos e junto a uma grande árvore onde estes se juntavam para discutir diversos assuntos que eram do seu interesse – pois, como todos sabem, os mochos foram sempre os mais sábios de entre todos os animais e, como é natural em pessoas que possuem tal sabedoria, entregavam-se frequentemente a longas discussões filosóficas aborrecidíssimas, pelas quais apenas eles se interessavam.
Aconteceu que, um dia, numa dessas sessões de erudita conversa, se começaram a debruçar sobre eles próprios e sobre a sua própria natureza, coisa que, como todos sabem também, é algo muito perigoso e incerto. Depressa entraram em conflito a propósito da seguinte intervenção de um mocho mais jovem e inexperiente:
- Então digam-me lá quem é que nasceu primeiro, o mocho ou as orelhas do mocho?
Um dos mais inteligentes e de espírito mais preparado para as coisas transcendentes tratou logo de responder:
- Olha! Que pergunta parva! Qualquer mocho que se preze sabe a resposta: foi o mocho que apareceu primeiro.
A esta afirmação seguiu-se uma grande algazarra, pois todos os sábios ali reunidos se apressaram a debruçar-se sobre o que fora dito e a emitir juízos diversos. Pode parecer estranho mas, de um grande consenso que antecedera a resposta do velho mocho, passou-se à maior discórdia, em que todos queriam ver reconhecida como válida a sua opinião, sempre diferente da do vizinho do lado, e ninguém concordava com ninguém. É que, apesar de todos considerarem ser aquela uma pergunta óbvia e saberem a resposta correcta, todos conheciam uma diferente:
- O mocho e as orelhas nasceram ao mesmo tempo! – dizia um.
- Não! Isso não está correcto! Todos sabem que foi o mocho que nasceu primeiro e depois fez as orelhas! – retorquiu o vizinho.
- Mas, se assim fosse, o mocho que nasceu primeiro não era um mocho, porque não tinha orelhas, uma vez que não as poderia fazer nele próprio. – tornou o primeiro!
- Porque não? Se ele fosse capaz de criar orelhas, podia fazê-las em si mesmo. – intervieram três ou quatro.
- Ora! Onde já se viu um cientista fazer experiências em si próprio!? – argumentou o primeiro sábio. –
- Ai, ai! Meus caros amigos, é melhor não entrarmos em tal discussão! – atreveu-se a dizer um outro, de índole conciliadora.
- Uuuu! E porque não? Julga que não somos suficientemente inteligentes para chegar a um acordo? – protestou um, recebendo o apoio de quase todos (é que nem nisto lhes era possível obter a unanimidade!).
- Não se trata disso. Ninguém pode negar que somos os sábios dos sábios, mas ouvi dizer que as galinhas começaram uma discussão semelhante, já lá vão centenas de anos, e ainda não chegaram a conclusão nenhuma. Parece que é por isso que andam sempre a cacarejar umas com as outras. Se não me engano, tratava-se de saber quem é que nasceu primeiro, se foi o ovo ou se foi a galinha.
- Ora, ora! Afinal, eu tinha razão em dizer que as galinhas são pouco inteligentes… - ia a dizer um, que foi prontamente interrompido.
- Tu nunca disseste isso! Cá para mim, estás a querer armar-te em esperto! – disse o conciliador, que adoptava agora, com evidente prazer, a função oposta.
- Uuuuuu! Quê? Deves estar a intrujar as minhas orelhas! – que, na terra dos mochos é como quem diz «deves estar a gozar comigo!». É verdadeiramente lastimável a quantidade de vezes que eles centram as coisas nas suas orelhas - Em todo o caso, o problema não é esse: todos sabem que a galinha nasceu primeiro! – afirmou o que tecera considerações sobre a limitada inteligência das galinhas.
- As tuas orelhas devem estar murchas! – o que significa algo como «estás doido!» - Onde é que já se viu uma galinha que não tenha vindo de um ovo!?
- Eu nunca vi um ovo que não tivesse saído de uma galinha! – indignou-se o perito em assuntos de galinhas. Lançaram-se noutra acesa discussão, desta vez sobre o ovo e a galinha.
Houve, então, um mocho que, já cansado destas estranhas conversações sobre os problemas das galinhas que nem elas próprias conseguiam resolver – apesar de a resposta não lhes interessar muito, pois preferiam que a discussão se prolongasse indefinidamente e as deixasse acompanhá-la de longos pios e cacarejos –, teve a sensata (ou insensata) intervenção:
- Amigos mochos, por que não deixarmos para trás estes problemas galináceos tão desinteressantes e debruçarmo-nos de novo sobre o tema muito mais estimulante que é o mocho e as suas orelhas?
Parece que teve a aprovação de todos - ocorrência que se verificou pela primeira vez durante e sessão daquele dia -, porque logo retomaram a importante discussão que levaria – ou, pelo menos, eles assim criam – à descoberta da solução do problema premente que se instalara, fazendo uma algaraviada ainda maior até que, no meio de todo aquele barulho, houve uma alma esclarecida que decidiu ir buscar o Bibliotecário, para que este participasse na discussão e pusesse fim à disputa.
O Bibliotecário era um mocho muito velho que já vivera centenas – ou mesmo milhares - de anos e que era o mais sábio de todos os mochos. Era, na verdade, o maior sábio de sempre e a sua autoridade em matérias eruditas era inquestionável – em boa verdade, era inquestionável em qualquer assunto. Sabia tudo de tudo e, como era um sábio, sabia que o que sabia, todo o saber conhecido, era incompleto, o que devia obrigar os sábios a procurar sempre mais alguma peça do puzzle do conhecimento, ainda que o devessem fazer com moderação.
O Bibliotecário vivia numa árvore que era tão velha como ele ou mais ainda. Essa árvore era tão alta que a copa já ficava muito acima das nuvens. Dizia-se que crescia na mesma medida da sabedoria do Bibliotecário. Era oca e o seu tronco era muitíssimo largo; era lá dentro que o Bibliotecário vivia e era lá que estava armazenada a sua biblioteca gigantesca, o grande tesouro do velho mocho. Não esqueçamos que, para o seu povo, uma biblioteca era a maior das riquezas e um livro uma jóia de grande valor.
Mas a distância entre essa árvore e o sítio onde estava a ter lugar a discussão era muito grande, por isso, quando Bibliotecário chegou, a discussão já durava havia dois dias e os participante estavam cansados e irritáveis. Assim, o Bibliotecário recomendou-lhes que fossem dormir um pouco e que de noite retomariam a análise do tema que estava em estudo.

Depois de o sol se ter posto, quando já todos estavam muito mais bem-dispostos, voltaram a juntar-se em torno da tal árvore onde havia tido início o debate. Depois de ter ouvido todas as opiniões – e eram muitas! –, o Bibliotecário pronunciou-se sobre o assunto, com a serenidade que lhe era habitual, dizendo:
- Meus amigos, começastes uma discussão sobre um tema melindroso, do qual nenhum de nós é senhor. A questão que colocastes é insolúvel, tal como aquela que vigora entre as galinhas, porque diz respeito ao mais recôndito de cada um de nós, a nossa criação. Nunca saberemos quem está certo e quem está errado, pois precisaríamos de um conhecimento tão grande quanto perigoso, conhecimento esse que, penso eu, nunca estará ao nosso alcance. E, se as minhas suspeitas são justificadas, é melhor que assim seja. O que devemos, pois, escrever nos livros que queremos acrescentar às nossas bibliotecas? Devemos registar a verdade, isto é, que há várias teorias, as quais são as que formulastes; devemos deixar escrito que, provavelmente, nunca saberemos a verdade e explorar cada uma das teorias, enumerando-lhes os pontos fracos e fortes. Quem sabe se isso não nos permitirá, daqui a algum tempo, retomar esta discussão, com mais calma e após longo estudo, e dar mais alguns passos em direcção à verdade que agora nos parece inatingível? Tenho dito!
A assembleia, não obstante saber que o Bibliotecário tinha razão, ficou triste por não poder chegar a nenhuma conclusão sobre o assunto. Ficaram todos tão desanimados que o Bibliotecário decidiu contar uma história, em jeito de compensação, uma história que faria voar o tempo que ainda faltava para o raiar da aurora. Como a proposta agradou a todos, o idoso mocho aclarou a voz, começando em seguida:

» - Aqui neste mesmo lugar, num tempo muito distante, teve início entre os mochos que então aqui viviam uma discussão muito semelhante à que culminou com a minha explicação desta noite. Não havia meio de chegarem a um acordo. Lembro-me desse dia como se fosse hoje, não obstante tudo isto se ter passado há muito mais de mil anos. Então eu era ainda um jovem mocho… «
A assembleia soltou um prolongado «Uuuuuuu», pois era-lhes impossível imaginar o Bibliotecário em novo, uma vez que tanto os seus pais como os seus avós e os avós destes – e por aí fora – tinham conhecido o Bibliotecário já velho. Era um tempo demasiado remoto até para a imaginação. O velho mocho continuou…
» Nessa altura não havia ainda um Bibliotecário, nem ninguém para moderar a discussão. Os mochos começaram a tomar partidos, a discussão tornou-se agressiva e as bicadas proliferaram. Eis então que um dos grupos se viu obrigado a abandonar o nosso reino, agora calmo e belo. Eram cerca de cinquenta mochos. Voaram para Norte, de dia e de noite, sem descanso. Foi um acto horrível de se fazer, expulsar assim alguns dos nossos semelhantes. Lembro-me de o meu pai dizer que este Conselho de Sábios estava maluco…e é bem possível que estivesse!
Seja como for, esses nossos irmãos que foram banidos passaram duras provações. Sofreram muito, uma vez que, banidos da sua terra, estavam condenados a deambular pelos gelos eternos do Árctico. O frio por que passaram foi tal que, numa longínqua noite de duro Inverno, as suas orelhas congelaram e, posteriormente, caíram… «
Chegados a esse ponto da história, o «Uuuuuuu» transformou-se em «Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu». Um mocho sem orelhas não era um mocho! E foi isso que um dos mais novos fez, uma vez mais, notar, ao que o Bibliotecário respondeu:
- Pois é. Um mocho sem orelhas não é um mocho. Foi assim que surgiram as corujas, as nossas parentes mais próximas. Estão a ver por que razão vos contei esta história? Ela demonstra bem os feitos horríveis originados pela ignorância. Podemos não saber de onde vem o que temos, mas isso não é o mais importante. O que é mais necessário que se saiba é o que acontece se perdermos o que temos, para onde vai uma coisa quando desaparece e também as causas do seu desaparecimento. É importante sabermos isto para podermos evitar que desapareça. Lembrai-vos disso!
Depois de muito agradecerem ao Bibliotecário, os mochos foram-se retirando, aos poucos, cada um seguindo para o seu buraco numa árvore. O sol estava prestes a nascer.


Tomás Vicente (ex-aluno)

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