25/12/13

Contos Contados 1: "O Coração do Mundo"

O Coração do Mundo
Algumas pessoas acreditam, pelo menos durante algum tempo, na existência de outros mundos, onde qualquer um pode dar forma à sua imaginação, e, perante tão agradável perspectiva, protegem-na ferozmente. Mas há outros, a grande maioria, que preferem acreditar que o mundo é constituído apenas pela nossa realidade, onde, dizem, não há lugar nem para o menor salpico de fantasia, vindo do mundo que os primeiros não cessam de defender ferozmente! Teorias mais rebuscadas à parte, eu prefiro um meio-termo. No fim de contas, é possível que estejamos todos errados e que a verdade só se encontre nas histórias. Ora, vejamos o que esta nos diz sobre isso…

A noite sem luar estendia-se vagarosamente sobre as copas das árvores, tomando, com lentidão, o lugar dos derradeiros raios de sol, que tingiam toda a região com o brilho dourado, frágil e belo do fim do dia. Em pouco tempo, escureceria por completo e os animais que habitavam aquela longínqua terra sabiam-no muito bem. Mas, ao contrário do que acontece nas florestas e bosques por onde passeamos hoje em dia, não corriam a esconder-se nas suas covas e refúgios, antes se apressavam em direcção a uma grande clareira onde ardia já uma fogueira, um enorme monte de troncos ao qual fora ateado fogo como que para saudar a noite que se aproximava. As labaredas acenavam, com a sua luz risonha, a todos os recém-chegados, bruxuleando suavemente.
Quando os últimos raios de sol morreram a ocidente, já todos os seres capazes de andar se encontravam ali. Digo «seres» e não «animais» porque, para qualquer pessoa que observasse aquela reunião mais de perto, se tornaria rapidamente claro que quem fazia parte daquele grupo não pertencia à classe de criaturas que habitualmente designamos por animais. Isto porque, embora a sua forma fosse, por vezes, semelhante ou igual à de certos animais, todos eles detinham algo que os animais que vemos comummente não foram talhados para ter: todos eles eram racionais. Coisa estranha, não é? Mas era assim mesmo!
Estavam lá presentes representantes de quase todas as raças que, regularmente, supomos só existirem em mitos: havia faunos, centauros, animais falantes, anões, duendes travessos e outros que tais. Contemplavam o lume enérgico, cuja luz ocultava o brilho das estrelas e da lua, que já de si não era muito abundante naquela noite. Pairava animação sobre a clareira e todos tagarelavam para passar o tempo, até que chegasse o momento por que esperavam.
Ali, a vida era pacífica e harmoniosa e não havia inimizades nem as infindáveis contendas que mancham tantas terras nossas conhecidas. Pertenciam todos à mesma raça, ainda que com características e aspectos diferentes e nomes ainda mais díspares! Assim, era possível ver lobisomens a conversar com duendes, fénixes cantando para alegrar pequenos ouriços-cacheiros falantes, centauros acamaradando com elfos e assim por diante. Estavam numa terra onde as bruxas não eram caçadas e a magia era olhada não como desconfiança mas com naturalidade e maravilhamento. Assim, elas, as velhas curvadas e de longos cabelos sentadas no meio da multidão, recompensavam os seus pacatos vizinhos com belas demonstrações da sua arte mágica e esplêndidos fogos-de-artifício.
Nessa noite, estavam reunidos para recordar a paz e a sua reafirmação, pois, num tempo muito recuado, o mundo que haviam conhecido estivera ameaçado e a ponto de ser destruído, até que, no último momento, um homem chamado Merlin, o mais poderoso feiticeiro de todos os tempos, conseguiu restabelecer a paz e permitira-lhes voltar a viver tranquilamente. Por isso, a cada ano, naquele dia, que marcava o aniversário desse grande acontecimento, reuniam-se nessa clareira para ouvir a história desses tempos antigos, que – assim mandava a tradição! – era contada sempre pelo mais idoso de todos eles. Nunca se cansavam de a ouvir, pois era uma história muito bonita e cheia de ensinamentos e era desse momento que estavam à espera.
Então, quando a tagarelice estava no seu ponto alto, o grande e velho mocho falante, que se encontrava destacado do círculo perfeito formado pelos convivas, abriu repentinamente as asas, pedindo silêncio. Todos os animais se calaram abruptamente, como que silenciados por um qualquer mago escondido nas sombras que abundavam para lá da roda de luz da fogueira, no âmago da noite. Abrindo o sensato bico, o ancião começou a narrar a história, sob a forma de poema, que era, entre eles, o modo mais popular de contar histórias:

Há muitas luas distantes,
Cuja conta certa já não se conhece,
Estava suspensa por um fino fio
A salvação deste e do outro mundo,
Pois furiosa estava a Natureza
Com os orgulhosos humanos,
Que não respeitavam nem amavam
Nada do que na terra existia.

De entre eles, os piores eram os romanos,
Que subjugavam todos os anos
Muitos outros costumes e povos,
Que não conheciam nem entendiam;
Destruíam tudo o que outros faziam
E não obedeciam à lei original,
Que dita que a diferença é sã e natural.

Tudo queriam à sua vontade vergar
E nada tinham vergonha de estragar!
Aos centauros quase dizimaram
E aos faunos cruelmente escravizaram…
Já quase só havia homens no mundo
E todos eles de espírito imundo.

Aos druidas sábios chacinaram,
Aos resistentes e habilidosos anões
Nas fundas minas encarceraram.
Não tinha, pois, igual o estrago
Feito pelos latinos conquistadores,
Que se esqueceram de ser observadores.
Havia, no entanto, gente mais poderosa
Que esses bárbaros civilizados,
Que em todo o lugar queriam reinar;
Esse povo era escasso e errante,
Druidas exilados que, não obstante,
Não tinham ainda esquecido
O saber que há muito lhes tinha ensinado
Algum mestre douto e respeitado.

De todos os que ainda viviam, tresmalhados,
O maior era o idoso Merlin, o Sábio,
Que, à sua passagem pelos campos e matas
Enchia de alegria as flores das terras fartas
Com o poder da sua sensata e perene magia,
Que, mais que da varinha, lhe vinha da sabedoria!
Dos antigos tempos vira ainda a glória
E da sua beleza guardava sempre secreta memória.

Foi ele que soube, certo dia, que a Natureza,
Desesperada por uma represa
Que fizesse parar a romana destruição,
Dizia em altos e contínuos brados:
» Destruirei o universo em protesto
Para aniquilar esta ditadura, que detesto! «

O velho druida, atemorizado pela ameaça
De destruição do mundo belo,
Que com o feio e tirânico iria sucumbir,
Decidiu fazer algo inaudito
E impedir esse projecto maldito.
Eis o que congeminou o feiticeiro:
» Dividir o Mundo em duas partes,
Usando toda a minha magia,
Deixando numa a beleza e a claridade
E noutra a escura e disforme fealdade;
Numa o que é bom e são,
Noutra o que é do mal demonstração! «

Assim labutou o velho Merlin,
Sabendo que, para uma coisa dividir
Sem essa mesma coisa assassinar,
Teria que dela preservar o coração.
Isolou o Coração da Terra,
Que era ainda belo e fecundo,
E dividiu em duas partes
O que restava dessa grande imensidão;

Para uma das partes levou os romanos
(E também os restantes humanos!),
Na outra estes seres que somos alojou,
Construindo, depois, uma barreira
Que de nenhuma maneira
Se pudesse atravessar,
A não ser pela imaginação,
Que concedeu a uns poucos
Que o espírito tinham ainda são.

Mas tanto era o mágico poder
Para tal tarefa utilizado
Que, chegando ao termo o trabalho
E não tendo o feiticeiro
Dentro de si nenhuma gota de magia,
Morreu o velho Merlin,
Da salvação o obreiro.

E a Natureza, viu, então,
Tal entrega e ao mundo devoção,
 Que, por respeito para com ele
E o seu admirável trabalho,
Se absteve de transformar
A parte feia do mundo num borralho;
Antes a purificou e dela eliminou
Os tontos romanos, que estavam
Convencidos de que já só latim
No Mundo se ouvia e se falava,
Que apenas de empedradas estradas
A Terra se decorava.

E o que fez ela ao Grande Coração?
Lá dentro sepultou o Mestre Merlin
E, depois disto feito e acabado,
Consigo ternamente o tomou
E à Lua branca e bela o entregou.

Mas esta história não se finda por aqui
Pois ainda há que contar,
Se já disso não me esqueci,
Importante parte deste grande conto
Que é a história da divisão do mundo.
É que a lua pequena é e muito bela,
Mas resistência é coisa que não tem ela!
O forte e precioso coração
Começou, por isso, a consumir-lhe
As suas escassas forças e a sua energia
E, com o passar dos anos,
Muito cansativo e pesado
Se tornou o fardo carregado

Então, numa noite de luar,
Que estava pálido e doentio,
A lua sentiu que mais não podia.
À Mãe Natureza pediu perdão
E ajuda, necessária e desejada,
Pois estava prestes a desmaiar
E ao seu fardo largar.

Mas a Mãe Natureza, que muito longe
Estava, ocupada com outros assuntos,
Não o pôde agarrar nem ao mal evitar;
Assim caiu o Coração do outro lado
Da mágica barreira dos mundos.
Era, pois, necessário, quem o fosse salvar!
Mas quem o poderia fazer?

Essa é outra história,
Como esta tão bela mas,
Por já muito tarde se fazer
E o meu olho me doer,
Não posso eu narrar
O que ela tem para contar!

Estes últimos seis versos eram da lavra do próprio mocho maroto, que gostava de ver a assistência protestar, por estar sedenta da história que ele dizia já estar demasiado ensonado para contar. Tal como esperava, o desagrado benevolente da assembleia não se fez tardar e o velhote, satisfeito por querem continuar a ouvi-lo, retomou o fio à meada, introduzindo a nova fase da recitação com mais uns quantos versos improvisados:
Como ia eu dizendo…
Eis que, caindo o Coração da Vida
Na purificada terra dos homens,
Começou a perder a força e o vigor,
Pois determinado tinha o Salvador
Que nunca mais se havia de juntar
O que tanto custara a separar.

E também barreira por Merlin criada
Com o grandioso e nobre objectivo
De os dois mundos preservar
Em cautelosa separação,
Começou a enfraquecer e deixar
Sobre as fronteiras o seu controlo afrouxar,
Como um muro velho e decadente
Em que inúmeras brechas se abrem.

Como disto e da obra de Merlin
Nada os humanos sabiam,
Tínhamos que ser nós,
Os seres deste mundo iluminado,
A solucionar este problema
Que a todos afectava.

Foi por isso que, nesse tempo distante,
Se reuniu aqui mesmo uma assembleia
Para no tocante a isto tomar uma decisão.
Acordo, no entanto, não houve entre os sábios,
Sobre o modo como devíamos proceder,
Até um meu antepassado a voz ter erguido
Para a todos comunicar o que fazer,
Segundo o que lhe ditava o seu saber.

Assim falou ele, nesse dia que os vivos não viram:
» Busquemos o lugar onde caiu o Coração,
Pois podemos nós tocar-lhe
Sem que nada de maligno aconteça,
Mas temos, primeiro, que elaborar
Um invólucro onde o reter e guardar
Pois vimos já que, sozinha, a Lua
Não o poderá para sempre suportar. «

Todos acordaram que sábia
E acertadamente ele falava
E alegremente concordaram
Em se entregar a tal trabalho,
Partindo logo os anões para as suas minas
Para fazerem algo digno de revestir
O Coração que lhes permitia existir;
E fizeram-no do mais puro diamante,
Para o coração uma casa brilhante!

Mas ainda tinham que decidir
Quem devia executar a busca
Do que se havia perdido,
Mas, nessa urgente questão,
Ninguém com o vizinho concordava;

Diziam uns que fossem os mais fortes,
Outros votavam nos mais sábios
E os mais inteligentes e esclarecidos
Numa mistura de ambos.
Mas isso muitos não aceitavam
Por se verem da demanda excluídos -
Eram estes os patetas e os fracos,
Em coisa alguma bem sucedidos.

Perante tal contenda e dilema,
De novo o meu pai ancestral
Fez as suas entendidas palavras
Por toda a floresta retumbar:
» Se não acordamos em quem detém,
De entre nós, mais hipóteses de sucesso,
A consenso podemos chegar,
Com toda a certeza e confiança,
Sobre quem tem disso menos esperança! « 

Perguntaram logo ao velho mocho
Qual era o seu intento sábio
            Para que, tão inoportunamente e sem razão,
            Os arrancasse à útil discussão
De caso tão premente e melindroso
Para os lançar na procura dos piores
E não, ao contrário do que a necessidade
Implacável de momento exigia,
Na busca urgente dos melhores.

Explicou então o idoso sábio
Que, não podendo os melhores ser apurados,
Por tantos haver com qualidades valorosas,
Deviam ser os piores seleccionados
            Para que, sendo-lhes a missão confiada,
            Se tornassem, também eles,
            Em seres pelos restantes estimados
            E pelo êxito coroados!

Confundidos ficaram todos os ouvintes,
Sem, no entanto, ousarem desmentir
O sapiente ancião, que muito respeitavam,
Pois reconhecida era a sua sabedoria.
Escolheram, por isso, os piores
Que de entre eles puderam designar,
Um magro e falante gato preto,
A quem o azar seguia de perto,
E uma coruja tristonha e velha,
De pios lamentosos e fatigados,

Entes a quem a humana raça
Considera desde sempre como sendo,
De entre todos os da praça,
Os portadores do azar e da desgraça.
Do que eles mais agoirados,
Apenas os tristes e soturnos noitibós,
Sapos e rãs, mas esses, de tão azarados,
Infelizes bichos, esses coitados,
Que nem falar podiam,
Nem pensar conseguiam…
Nem por sombras ali viviam!

Foi-lhes, por isso, prometido
Que, se o sucesso os acompanhasse,
Quer na ida, quer na vinda,
Seria a sua fama antiga esquecida
E sua história reconstruída.
E lá partiram eles, procurando
A fortuna pretendida, sem, no entanto,
Terem de a encontrar muitas esperanças.

Mas – imagine-se! – tiveram sucesso
E o prometido logo foi cumprido,
Uma vez que a doença do Mundo curaram.
E as corujas e os negros gatos
Muito felizes se tornaram!

            Aconteceu ainda estranho caso,
            Destes acontecimentos derivado,
            Parece que o Coração do Mundo,
            Durante o tempo que passaram caído,
            Tinha à terra dos homens criado
            Grande e abnegada afeição,
            Porquanto, desde aí, a cada ano que passa,
            Estilhaça o seu brilhante invólucro
            No céu do nosso doce lar,
            Para logo de seguida se renovar;
           
Mas cada um desses estilhaços
            Galga a barreira de Merlin
            E se fixa num humano coração,
            Dando ao seu hospedeiro o dom da Visão,
            A aptidão para nos conhecer
            E o nosso país feliz observar;
            Pois o que lhes bate no peito,
            Por ironia do destino,
            À primeira vista frio e duro,
            É um bem valioso e raro
            Que, chamando-se Imaginação,
            Não conhece fronteira nem muro!

O mocho calou-se, observando as expressões dos seus ouvintes. A luz da fogueira iluminava-lhes os rostos emocionados. Era para eles evidente que Merlin, mesmo depois de morto, exercia um poder benevolente sobre todos, e achavam isso tão transcendente como comovente. Como seria possível? Ou talvez não fosse Merlin, talvez fosse apenas a lembrança da sua existência, a marca que deixara na grande história do mundo e que ainda jorrava feitos bons como uma ferida aberta…
Não podiam, também, deixar de lembrar as palavras desse outro mocho sábio, havia muito desaparecido, acerca aqueles que tinham sido, em tempos, os piores de entre eles. É assim que uma comunidade deve agir sempre: os melhores contribuindo para o aperfeiçoamento dos piores; e a que não o fizer nunca será uma comunidade feliz, pois tudo o que há de melhor em cada pessoa nasce do esforço de aceitar e compreender os outros como são – e não como gostaríamos que fossem.


Tomás Vicente (ex-aluno)
Este texto foi um dos dois textos deste ex-aluno que, com outros escritos de alunos, figurou numa sessão de poesia que se realizou na BE em Março de 2011. Em Janeiro de 2012, foi de novo usado, com o conjunto a que pertence, numa sessão de poesia "Contos e Poemas", que se realizou na BE. Ambas as actividades foram promovidas pela professora Clotilde Mota, em colaboração com a Equipa da BE.



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