01/11/11

Apresentação do Sr. Eliot - crónica do mês


Um acontecimento literário significativo é, por estes tempos, marcante na actividade editorial e crítica. Tornou-se impressionante a sucessão de louvores e de prémios (nacionais e internacionais) atribuídos a Gonçalo M. Tavares.

Este novo autor português, o “novo” aqui referindo-se à idade é tão impositivo que o obriga a ser também novidade editorial e literária, já fez incursões escritas sob todas as formas, poesia teatro, romance, ensaio e sempre com enorme aceitação.

Autores como Saramago e Lobo Antunes, por exemplo, referiram-se à sua escrita em termos elogiosos.
Fenómeno de aceitação tão ruidosa e imediata como o de Gonçalo M. Tavares, assim mais recentemente recordo-me do sucedido com José Luís Peixoto, que com a Publicação do excelente Morreste-me, deste mesmo modo suscitou, então, extraordinário aplauso.

Numa consideração que tem muito de subjectiva, creio que, pelo menos na forma como o leio, nunca este autor veio a conseguir depois a qualidade de escrita e intensidade emocional que com aquela obra apresentou.

Poderá o mesmo vir acontecer com Gonçalo M. Tavares? Talvez sim, talvez não, pois neste momento ainda não sei deste escritor o merecimento de tanto e entusiástico aplauso. Apenas li do autor um pequeno livro aconselhado por crítica (quase sempre é assim que faço as minhas escolhas literárias, cinéfilas e demais artísticas).

E é desse livro que aqui venho falar, tal a surpresa e a estranheza que me causou. Explico melhor, acho eu. Esta crónica não é tanto para considerar sobre a excelência de um escritor, o que me escapa, mas para lhes contar do desconcerto de um livro.
Passo então a relatar;

O senhor Eliot é um conferencista que, perante um público geralmente reduzido, de que os Srs. Breton, Borges e Balzac, por exemplo, fazem sempre parte, analisa um verso de um poeta, disseca-o e denuncia todas as suas alegadas incoerências. E porque acontece isto ? Porque o Sr. Eliot tem desenvolvido, a um ponto extremo, a antítese da percepção e do dizer poéticos.

A leitura das comunicações feitas nas suas conferências deixam-me aterrado – tanto mais quanto tenho alguma poesia editada – pois nunca supus que tal destruição e drenagem dos húmidos e férteis vales poéticos pudesse ser feita. Às passagens do Sr. Eliot os versos mirram e os poetas morrem,
(E este último período saiu-me muito bem.)

No livro de Gonçalo M. Tavares – O Senhor Eliot e as conferências - são analisados, melhor devastados, versos de poetas como Char, Meireles, ou Auden .
Pois, meus caros leitores, fiquei de tal forma impressionado com o figurão, que não resisti a imitar este Sr. Eliot. Repito, o que se segue é uma imitação, bem intencionada da minha parte, de Gonçalo M. Tavares. (E por falar em imitações, também faço uma muito boa do Dr. Hannibal Lecter – quid pro quo Clarice – mas isso agora não interessa nada.)



Como seria se o Sr. Eliot analisasse um verso de Luís de Camões ?

Perante uma Plateia muito reduzida o Sr.Manganelli apresentou o Sr. Eliot que começou a sua comunicação já com um atraso considerável.
Amor é fogo que arde sem se ver de Luís de Camões

A definição é enciclopédica. Consigo imaginar alguém que vá folheando as primeiras páginas do seu Dicionário enquanto se auto-motiva “ Ora deixa cá ver amor.. amor.. Ah cá está; fogo que arde sem se ver".
Ora, esta definição tem pouco, diz pouco e deixa muito por explicar.
O verso tem redundância. “Fogo que arde “. Que se saiba, e a não ser que o poeta escondesse alquimística informação privilegiada, todo o fogo arde. É mesmo essa a sua condição de ser fogo.
Ora, torna-se muito interessante ver aqui a antecipação de um problema lógico e epistemológico que Karl Popper viria a colocar no século XX. Se se pretender provar que todos os corvos são pretos, não devemos procurar o milionésimo sexto corvo que o seja, mas o primeiro que não o é. Depois o problema está em saber se um corvo que não fosse preto era ainda um corvo…
Por isso no verso de Camões O fogo arde num desperdício semântico e ontológico. Poderia o vate ter-se ficado pelo O amor é fogo, que logo se tinha explicado.
Mas falta ainda saber porque privilegiou o poeta este elemento natural e significativo, sobre outros. Porque não é o amor, chuva que cai ou aroma que cheira?
Os problemas estão longe de acabar aqui, porque depois vem o sem se ver. Ora se é sem se ver, o amor tanto pode ser fogo, como uns atacadores de sapatos.. Se não se vê, sabe-se lá o que é.
E não se vendo como se sabe que é fogo? Estamos aqui não só a negar, já não digo uma objectividade referencial da realidade, mas mais, a própria condição da intersubjectividade fenomenológica como a razão necessária, a que nos queríamos, desesperados, agarrar, para a viabilidade do conhecimento.
Dizer peremptoriamente que o fogo arde sem se ver, constitui a mais radical afirmação solipsista proferida na História da Filosofia Ocidental. Nem Platão, nem Leibniz foram tão longe.
Por tudo isto, o que proponho é que o verso camoniano passe a ter a seguinte redacção:
 O amor é o que seja. Desde que se veja.



Joaquim Marques

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