02/10/11

Contos de Fados - crónica do mês


Num gesto de grande amabilidade, que foi para nós um grande incentivo, o professor Joaquim Marques dispôs-se a enviar-nos, mensalmente, uma crónica sua «de temática cultural». Assim, chegado Outubro e findo o primeiro mês de aulas (que passou tão célere como um foguetão!), apresentamos o primeiro texto daquilo que, esperamos, será uma longa série! 
Esta crónica, muito divertida e com uma estrutura moderna e informal que, por isso mesmo, é ainda mais pertinente e aliciante, fala-nos acerca do fado e do seu lugar na cultura de hoje, entre outras coisas...


Contos de Fados de Aldina Duarte e outras coisas a propósito!


Assistimos a um grande desenvolvimento do interesse pelo fado, interesse que justificadamente culminou com a candidatura do fado a Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Refiro que estou de alguma forma ligado a este misterioso género musical, poético e até filosófico, por a minha recente actividade literária estar orientada para a escrita de poesia de fado, para alguns fadistas.

No meio desta descoberta recente e entusiasmada do fado a que se assiste (só para ilustrar temos já boas estações de rádio especializadas, a Rádio Amália e a Antena 1 Fado, p. ex.) há duas pequenas coisas que me irritam. A primeira é a moda. Gente que não entende, nem sente o fado, que se for preciso até é capaz de  estar a contar as últimas férias supé e assim no resort, enquanto ele a sério se canta, aparece muito, aparece demais.

E o oposto, embora preferível, também. Gente que nem o nome, quanto mais o canto de uma Teresa de Noronha ou de um Carlos Ramos conhece e que só distingue Katia Guerreiro de Ana Moura pelas fotografias, opina e decide abominar o fado desfiando um conjunto de preconceitos e clichés, insuportáveis, com as inevitáveis referências a Fátima e à ceguinha.

Quando oiço esta conversa presunçosa e ignorante, geralmente consigo manter a calma, tranquilizando também o interlocutor com a constatação;

- Hum… Então deve ser por isso que nunca ouviste cantar fado. Olha, mas fazes bem porque também não é para ti que eles cantam!

Destas duas atitudes é, sem dúvida, mais nefasta a primeira, a da moda, porque arrasta de uma forma sarnenta, hereges ao santuário.
(e assim se vê como, pela veemência registada, sou um purista intransigente dos rituais fadistas performativos)
Prefiro pois os outros, os que não sentem, não vivem, nem entendem o fado, porque sei que esses nunca me irão estragar uma audição e porque ao fado não fazem mal nenhum.

Estas adiantadas considerações foram só para me levar ao tema desta crónica cultural e que é a recente edição do CD de Aldina Duarte – Contos de Fados.



Começo pela voz da fadista. Segura, clara, interior, funda de uma expressão delicada e decidida.
Depois musicalmente dando como ponto de partida inquestionável a mestria de José Neto e Carlos Proença (para além de outros contributos de qualidade, pontuais) traz-nos um equilíbrio entre temas clássicos mais profundos e elaborados e outros de alguma previsibilidade, mas sempre simples, abertos e bem cadenciados.

É porém ao nível poético que este trabalho mais se afirma como sendo extraordinário. Primeiro por ser conceptual. Há duas linhas que nos conduzem de tema em tema. A primeira, a referência à literalidade feita pelas criações poéticas, onde surgem só como exemplo, Dostoiewski,  os Irmãos Grimm, Tenesse Williams ou Ricardo Reis.  Para além de Aldina Duarte escrevem sobre estas referências da Literatura Universal os poetas Manuela de Freitas, Maria do Rosário Pedreira, José Mário Branco e José Luís Gordo. A segunda é um consciente e, pela fadista, decidido caminhar da sombra para a luz, da tristeza para a alegria.

Quem não ainda ouviu Contos de Fados poderá estar a pensar nesta altura, pelo que refiro, que estamos aqui perante uma produção artificial, intelectualizada sem emoção. Nada mais errado e para demonstrar que assim é fecho com a transcrição do poema de Maria do Rosário Pedreira, digo eu a maior poetisa portuguesa viva, que a propósito da fábula O Pastor e o Lobo, de Esopo, num encanto, nos diz na Marcha de Manuel Maria Marques:


Gato Escaldado


Mais uma vez prometeste
levar-me de braço dado
por Alfama a passear.
Eu esperei tu não vieste,
ficou velho e desbotado
o vestido por estrear;
Vezes sem conta juraste
dançar comigo no baile
às portas da Mouraria
eu fui mas nunca chegaste,
sabem as pontas do xaile
o que chorei nesse dia
Vezes sem fim sugeriste
ouvirmos fados juntinhos
 num beco do Bairro Alto
de todas elas mentiste
eu gastei por maus caminhos
os meus sapatos de salto
Hoje vens para me propor
casarmos na Madragoa
como eu sempre te pedi
não pode ser meu amor
já sabe meia Lisboa
que eu não acredito em ti.



 Delicioso!

E agora pá , diz lá… o fascismo o quê , a ceguinha o quantos, pá ??

Joaquim Nogueira Marques,

autor de poesia de fado para Margarida Soeiro


http://a-trompa.net/videoclip/aldina-duarte-gato-escaldado
Nota: O professor J. N. Marques teve a amabilidade de indicar, para os interessados no assunto desta crónica, o site acima apresentado.

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