08/08/13

Residuais do Blogue "Palavras à Solta" - 6

III

Desfiguração

A caneta renega as letras,
O lápis renuncia ao movimento, em protesto;
O papel geme quando se lhe escrevem
As ásperas barbaridades
Que agora proliferam.

Desde sempre foram eles
Companheiros fiéis da mão que escreve,
Mas instrumento algum pode ainda dançar
Sobre a alvura das folhas lisas
Porque dor imensa lhes causa
A desfiguração da língua que amavam.

Esta é agora insípida, não existe
Porque não a determinou o tempo e as gentes,
Antes um pequeno número
De néscias assinaturas
Sobre um infame tratado
Que se destina a, como no mundo é frequente,
Descurar o que é certo
Em prol dos interesses de alguma cobra
Que, secreta, se aventura no ventre da noite
Para a coberto do secretismo
Desferir o cobarde golpe.

No entanto, o que não existe é volátil,
Instável como um castelo de cartas
E um certeiro e suave golpe de vento
Pode derrubá-lo a qualquer altura.

Assim, lápis e caneta,
Papel e aparo, bloco de notas,
Borracha e marcador
Cobrem-se de altruísta submissão
E esperam, encobertos pelo véu da razão,
O dia em que o feio castelo de cartas
Caia redondo no chão
Para em seu lugar erguerem
Outro que, de direito, se erga
Sobre as enseadas marítimas
Onde ainda, trazidas na crista das vagas,
As mudas consoantes murmurejam
As canções de quem não é ouvido
E os hífenes ligam o Rei do castelo
Ao povo nas areias do olvido.

Mas o Rei dar-lhes-á dignidade
E maiúsculas altivas para, se assim desejarem,
Mudarem o que não estiver bem,
Deixando, no entanto, ao tempo
O que aos séculos pertence.

Resta agora saber
Se o tempo matreiro
Terão os detentores de tal esperança
Por fiel companheiro.

Também quem escreve sofre,
Vendo que, por serem cobardes e saberem
Que há muitos que o não são,
Fizeram sair a língua portuguesa
Discretamente pelos bastidores,
Pondo outra decrépita em seu lugar,
Por saberem que, saísse ela pela porta da frente,
Muitas vaias justas os perseguiriam
E haveria alguém que aferrolhasse a entrada
Antes da triste saída dela.
Mas o poeta está triste demais
Para fazer como seus apetrechos
E esconder a eruptiva alma incandescente
Por detrás de uma cortina de cinzas.
Ademais, o poeta morrerá em breve,
Ainda que vivo fique o corpo humano,
Se apartado for da sua musa,
Enquanto os instrumentos da Palavra
Podem aguardar a eternidade.

Restar-lhe-ia, assim, procurar outra musa
E usar esta nova defeituosa ferramenta
Até a antiga primorosa – ou outra nova –
Encontrar.

Mas a sorte também piedosa se pode mostrar,
Cuidando que, se a conhecida musa
Não lhe devolver a tempo de o salvar,
Fornecer-lhe-á dela uma miragem
Que para ele existirá
Nos profundos sonhos do coração.
Assim guarnecido, poderá esperar
Pelo que o tempo a todos devolverá.
Esperemos pois com ele
E o tempo não falhará
Em devolver o que alguém nos arrancou.

 Tomás Santos


 IV

Sátira ao Professor Malaca Casteleiro

» Diz lá Malaca Casteleiro
De que se faz o teu jardim! «
» De acentos e mudas consoantes
E outras coisas assim![1] 

Mas não é bem um jardim,
É mais uma verde e viçosa horta
Pois, quando o tempo das colheitas
Bate discretamente à porta,

Lá vou eu para a minha horta 
Colher o que lá semeei
E podar os galhos de hífenes,
Que crescem céleres como líquenes.

Tiro também as consoantes de secura textual
Que, ao caírem, quase não se notam,
Só um rumor suave soltam,
De quem abre a seguinte vogal. «

Mas eu acho isto mal, 
Acho que não é coisa natural 
Ceifar-se assim um pomar
Que dá bons frutos das flores a desabrochar;

E ainda acho pior a ofensa
Por ter sido apadrinhada
Por um linguista (linguarudo) de "meia-tigelada" - 
e português! -, que só me merece uma sentença:

Que, gentilmente, sem mais detença,
Se esqueçam os seus feitos duvidosos
E os seus méritos ociosos,
E que do olvido sejam pertença!

Não percebo como pode 
Alguém de tão nobre ofício
Fazer este ortográfico sacrifício
Que, terramoto, o edifício da língua sacode.

Bem sei que as palavras minhas
São de pouca monta,
Como opor ao vento forte as fracas joaninhas,
E que a minha opinião não conta.

Ainda assim, "sábio" professor,
Que, por isto teres obrado, te sei um tolo
E do teu erróneo acordo sei, de cor,
Contra-atacar cada parte do miolo,

Pois a mim ensinaram-me 
Regras de gramática e de ortografia 
E sabiamente explicaram-me
Que superar as regras era só para quem as conhecia,

Digo-te que deste um passo maior que a perna
E meteste-nos o estudo numa enrascada
De uma ridícula e malfadada
Catástrofe interna.

Faço o que digo e, do fundo do peito,
Aqui te deixo, sem reticências
As minhas sinceras, solenes condolências
Pelo trabalho que tens feito!
 Rodrigo Gonçalves









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