23/03/15

A Catedral - Texto de Homenagem à Professora Manuela Esperança

A Catedral
Texto de Homenagem à Professora Manuela Esperança, Directora da Escola Secundária de Vergílio Ferreira (1995 - 2014) e Primeira Directora do Agrupamento de Escolas Vergílio Ferreira (2011 - 2014)


Este texto, na sua forma original escrito para ser lido na sessão de homenagem à Professora Manuela Esperança no dia 20 de Março de 2015 e, por isso, originalmente concebido como um discurso, teve a seu favor (ou desfavor) o facto de não poder ter sido pronunciado na ocasião, o que deu azo a muitas correcções e à possibilidade da sua expansão numa reflexão de (assim o espero) maior alcance, mas também à tomada de conhecimento, por parte do seu autor, de factos que lhe eram alheios e que só em cima da hora ou após reflexão pode juntar às teses, se assim lhes podermos chamar, que inicialmente pretendia expor. Teve, também, como consequência mais ou menos previsível um certo desconforto de género e estilo, de modo que, agora, assim como está, é metade uma carta de louvor à homenageada, metade um discurso, que se pretende crítico, lúcido e até um pouco ácido, a uma parte do auditório que teria sido o seu nessa tarde de 20 de Março passado.

Senhora Professora Manuela Esperança,
Senhores Professores da Comissão Organizadora, Professora Helena Marques, Professora Maria da Luz Fonseca, Professor Francisco Chorão,
Caros Professores, ex-Professores, Funcionárias, Auxiliares,
Caros colegas, ou ex-colegas, caros Amigos,

Como todos sabem, estamos aqui reunidos para homenagear a Professora Manuela Esperança, a nossa muito estimada, muito querida Directora - digo "directora" e não "ex-directora" porque não vejo qualquer descontinuidade entre a pessoa que temos a honra de receber hoje e a que, durante dezanove longos anos foi, não só a pessoa que se assegurava de que o nosso dia-a-dia era um sucesso, como também a pessoa a quem gerações de professores e alunos, já para não falar de funcionários e auxiliares (recordo que parecia ter o dom da ubiquidade: onde era precisa, lá estava, esteve, sempre, sem falta), recorreram e com quem contaram. Humildado pela mera ideia de que a Professora já liderava os destinos desta escola no ano em que nasci, 1995, peço que me desculpem se, para encetar o que não pode ser senão mais um discurso de homenagem aquém da pessoa homenageada - pois, como escreveu Padre António Vieira, "para falar ao vento bastam palavras, mas para falar ao coração são necessárias obras" - recorro ao que se afigurará, para muitos, uma sinuosa digressão pelos caminhos, por desbravar, do reino da metáfora.

"As hastes dos pára-raios têm de ter ligação à terra. Mesmo as ideias mais abstractas, especulativas, têm de estar ancoradas na realidade, na substância das coisas". Estas palavras de George Steiner, no seu livro de 2004 A Ideia de Europa (trad. Maria de Fátima St. Aubyn, Gradiva, Lisboa, 2005) ajudam-me a introduzir e explicar o modo como procurarei abordar a celebração que hoje nos propomos levar a cabo, expondo, primeiro, a ideia abstracta e, depois, o modo como ela se relaciona com a substância das nossas coisas. Sempre tive por imagem mais aproximada do que é uma escola, não uma casa, um edifício, tão-só, mas uma catedral, uma catedral gótica, um edifício sempre em construção, acompanhando a construção e complexificação dos espíritos de quem nele entra. Não pretendo entediar-vos com uma palestra sobre a simbologia implícita na concepção de uma catedral gótica - coisa que, aliás, profissionalmente, me fascina -, nem com os efeitos que essa concepção devia produzir na consciência daqueles que passavam a porta e caminhavam em direcção ao altar. Concepções como as de Émile Mâle, de que tal simbologia se traduzia meramente numa "bíblia dos iletrados" estão, hoje, ultrapassadas - a arquitectura, a arte, o símbolo eram e são um elemento dialógico activo, em permanente interpelação do letrado tanto quanto (ou mais) do que do iletrado. Basta descrever-vos o que seria o efeito, o impacto prático da arquitectura como símbolo: orientada de ocidente para oriente, na direcção de Jerusalém, o visitante passava as sombras do pórtico e avançava pela nave à medida que tomava consciência, não só dos símbolos inscritos na pedra, mas também da luz que o ia acompanhando ao entrar pelos vitrais - não nos esqueçamos que o Gótico é a arte da luz por excelência - até chegar ao transepto; aí, um banho de luz multicolor das rosáceas iluminava aquele que se ajoelhasse perante o altar-mor. Tal é o processo de aprendizagem, das sombras do pórtico para a luz do transepto. E toda esta luz, toda esta magnificência, como é sustentada? Por uma variedade de engenhos brilhantes, como os arcobotantes, que permitiam que o edifício fosse mais alto, de paredes mais finas, com mais e mais elaboradas janelas (em suma, um templo à luz divina e não já um aedificium ambivalente nas suas funções espirituais e de protecção física, como no Românico), mas sobretudo pelos pilares esbeltos, que, no tecto, desembocavam em arcos ogivais, abóbadas em cruzaria e na majestade de uma perícia escultórico que compunha os mais belos desenhos que, por vezes, se assemelham a todo um mapa celeste num único tecto.

E nós, agora? (Descendo das hastes dos pára-raios para a sua ligação à terra). Os arcobotantes, esta magnífica equipa de professores de que dispusemos sempre, aqui, na Vergílio Ferreira, os quais ajudavam a distribuir o peso do edifício e sustinham esta magnífica estrutura de pedra, vidro e luz. Mas o nosso pilar tem sido, sempre, ao longo de tantos anos, a Professora Manuela Esperança. Nem quero sonhar, ou ter por pesadelo, o que acontecerá à escola sem esta formidável figura de mestre, condutora de um navio sempre exigindo mais e mais dedicação. Sabeis, não é fácil substituir um pilar, uma vez o edifício construído. Porque o que se tenta substituir é o pilar original que, como foi dito já, fez desta Escola aquilo que tem sido e que é hoje: um bastião de excelência. Mesmo quando os cálculos são bem feitos, há sempre um centímetro a menos, nunca se pode substituir um gigante. É disso que tratamos aqui hoje: de homenagear uma pessoa que tem a estatura, nas suas qualidades profissionais e pessoais, de um gigante.

Trata-se, também, de vincar uma lição, de marcar uma posição. A posição de quem, reverentemente, homenageia quem merece ser homenageado, contra a posição daquelas vozes de quem ladra por um osso no virar de uma maré. Ouviram-se vozes contra, segundo soube, a esta homenagem, gente que achava que os seus interesses não tinham sido servidos, gente que acha, talvez, que os seus interesses virão a ser mais bem servidos. É com profunda repugnância que me dirijo a essas vozes escuras, as dos fariseus no templo que, tal como os fariseus, só têm lugar fora dele: tacere nescit idem qui nescit loqui, não sabem calar-se os que não sabem falar. E disse acima que não é fácil substituir um pilar sem que o edifício desabe. Não sei grande coisa de engenharia, mas não é dessa engenharia que falo aqui, mas duma metafórica. Há quem prefira ir no espírito dos tempos, adaptar-se a cada nova conjuntura. Sábios, quiçá. Mas eu sou já um estrangeiro onde em tempos fui filho pátrio, pelo que posso falar com o destemor que outros não poderiam verberar, e assim farei. Quando os cálculos são bem feitos, por vezes, é possível minorar os estragos da sucessão. Mas, ai de nós, nas palavras de Cícero, o tempora, o mores! É que, homenageando nós um gigante, hoje, aqui, ao mesmo tempo observamos o que fizeram com esses cálculos! Foi, exactamente, como substituir o pilar desta catedral por outro da altura de um poste torto de candeeiro de rua, pequeno, mínimo, mísero. Que citação latina poderei para isto utilizar? Semel malus, semper malus? Tactum [est] de caelo monumentum Drusii patris? Chega, já gastei demasiadas palavras com anões: deixai-os brincar com o manto, a coroa e o ceptro dos gigantes, tropeçando no primeiro, perdendo a segunda e aleijando-se no terceiro, nenhum deles à sua medida feitos. Voltemos à homenagem e à homenageada, que, como escreveu Virgílio, gigante de outra ordem, mas gigante sumo no seu mester, o tempo foge, a hora já vai longa e o meu discurso também.

Referia, há pouco, que não via descontinuidade nenhuma entre a que foi a Directora desta escola e deste agrupamento até ao ano passado e a pessoa que hoje recebemos e, se formos justos, acarinharemos e que, portanto, me lhe referiria como "a Directora" e não "ex-directora". Diria mais, que não vejo como o prefixo "ex-" possa jamais ser aplicado à Professora Manuela Esperança, que será sempre a Directora da Escola Secundária de Vergílio Ferreira, no futuro como hoje e como ontem, a pessoa que nós conhecemos, admirámos e lembraremos - não só como a pessoa, mas como a pessoa que fez, em grande medida, a instituição com a qual todos nós, professores, alunos, funcionários, pais, crescemos, aprendemos e aprendemos a crescer. Homenagear a Professora Manuela Esperança é homenagear uma forma, na minha opinião a forma, de perspectivar o ensino. É homenagear todo um ideal que une mestres e discípulos, que todos somos, uns dos outros e do passado e de quem passou; é homenagear tudo o que a Escola Secundária de Vergílio Ferreira foi, tem sido, pode ser e poderia vir a ser, se os deuses e as musas forem bondosos. Do futuro ninguém pode falar ao certo, mas pelo fruto saberemos a qualidade da árvore.

Queria terminar este texto deixando uma nota pessoal. Dito o que disse acima, gostaria de agradecer muito sentidamente à Professora Manuela Esperança, por me ter dado a oportunidade e o orgulho de poder dizer que me formei na Escola Secundária de Vergílio Ferreira durante os seus anos de serviço, que pertenci a esta família sob a sua direcção; enfim, quero agradecer-lhe sinceramente por me permitir dizer, a quem perguntar, que eu ainda vivi no tempo dos gigantes.

Tomás Vicente
Lisboa, 19 de Março - 2 de Junho de 2015

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