A Maçã
Esta
é a história de um troll. Contudo, o troll desta história não era um troll como
os outros: era um troll muito - mas mesmo muito! – medroso. Tinha medo de tudo
– ou quase.
Como
tinha muito medo dos seus semelhantes, foi viver para a parte mais remota das
montanhas onde viviam todos os da sua espécie, numa zona onde não havia
vivalma. Lá, apesar de já não ter tanto medo dos outros trolls, dedicava-se a
ter medo de outras coisas. Tinha medo que as árvores lhe caíssem em cima, tinha
medo de se cortar nas facas que utilizava diariamente, tinha medo que as
feridas infectassem. Imagine-se que até tinha medo dos homens! É verdade, tinha
medo dos homens, que podia, se lhe apetecesse, esborrachar com o pé! É que, por
serem pequenos, ainda o assustavam mais. Os homens estavam para ele como os
ratos para os elefantes. Mas acima de tudo, o troll tinha medo de morrer.
Só
num dia, imaginava centenas de situações que lhe pudessem causar a morte e
passava a vida a tentar evitá-las a todo o custo, daí que tudo o que fizesse
demorasse imenso tempo a concluir pois, antes de fazer o que quer que fosse, o
troll pensava demoradamente nos riscos que isso poderia envolver e gastava
ainda mais tempo a pensar em todas as maneiras possíveis de os contornar,
tentando escolher em seguida qual a mais segura.
Antes
de ir para a cama, falava muitas vezes para com os seus botões sobre o dia que
tinha chegado ao fim, um dia inteiramente dedicado a pensar na própria segurança,
como, aliás, eram todos os outros. O que dizia a si próprio em tais ocasiões
era sempre essencialmente o mesmo.
-
Ai! Hoje foi um dia bem passado. Não corri perigo nenhum. Foi muito agradável.
– depois parava e pensava, por vezes, nos seus antigos vizinhos (os que tivera
enquanto se atrevera a permanecer entre os seus) – Os outros, se me ouvissem
falar assim, diriam que sou medroso. Pelo menos tenho hipóteses de poder morrer
velho, sem sentir nada. – considerava. Mas logo a seguir, apesar de não ser
velho e de, provavelmente não ter de se preocupar com a velhice ainda durante
muito tempo, assomava ao limiar da sua consciência o pânico incontrolável e
incontornável que tantas vezes o dominava. Como seria ir para a cama e nunca
mais acordar? Devia ser horrível…como cair eternamente num buraco sem fundo!
Refugiava-se imediatamente debaixo dos lençóis, como uma criança pequena, e
chamava pela sua mãe, que não o podia ouvir porque vivia no lado oposto das
montanhas.
Os
seus dias eram uma sequência de aflições provocadas pelo seu carácter medroso.
Por muito que se esforçasse para evitar qualquer situação que envolvesse o
menor risco, os acidentes aconteciam-lhe do mesmo modo que acontecem a qualquer
ser vivo, isto é, quando menos esperava. Assim, o pobre troll não podia evitar
certos “azares domésticos” como cortes e esfoladelas – coisa que, como disso
atrás, muito o preocupava. Quando isso acontecia ficava em pânico. A sua
imaginação extremamente fértil começava logo a trabalhar, inventando inúmeras
maneiras de o sucedido poder contribuir para a sua morte prematura. Um dia,
depois de um desses acidentes, que, por acaso, até o fez derramar uma ou outra
gota de sangue, decidiu que aquilo de que precisava era de se tornar imortal
ou, pelo menos, “menos vulnerável”.
O
troll lembrava-se de histórias que ouvira na sua infância – e que, na altura, o
tinham enchido de medo – sobre uma velha bruxa humana que vivia numa gruta, não
muito longe dali, a quem os habitantes das redondezas chamavam « a Feiticeira
Verde». Segundo as histórias, a Feiticeira Verde tinha uma maçã mágica que
usava para dar continuidade à sucessão das estações do ano. Na Primavera
apoiava a parte de baixo da maçã no solo e por todo o lado o verde se tornava
abundante; no Verão enterrava-a completamente e tudo atingia o seu auge. No
Outono desenterrava o fruto e apoiava a parte de cima no solo, criando o
fenómeno inverso, ou seja, as folhas caíam; no Inverno encerrava-o num pequeno
cofre.
Além
disso, segundo o que constava, essa maçã mágica atribuía a invulnerabilidade a
quem a comesse e o nosso pobre troll há muito, que havia muito a desejava
roubar, resolveu-se, depois de mais alguns pequenos azares, a levar o seu
intento por diante. Ora, isso aconteceu no Inverno, altura em que a maçã da
bruxa estava na caixa. Todo contente, pensou que não havia melhor altura para a
roubar, pois ninguém notaria diferença nenhuma, uma vez que o dito fruto já não
estava em contacto com a terra, e a feiticeira só daria pela falta dela quando
chegasse a altura de o Inverno ceder o lugar à Primavera. Claro que o bicho
medroso nunca se lembrou que, no caso de ser bem sucedido, estava a condenar a
Natureza a um Inverno perpétuo e começou a preparar-se, mas isso também
requeria muita coragem, que era aquilo que ele tinha em menor quantidade, e
demorou muito tempo a meter ombros à viagem.
Um
dia, quando, finalmente, conseguiu reunir a coragem necessária, pôs-se a
caminho. Não era fácil chegar à gruta da feiticeira, que estava protegida por
numerosas armadilhas destinadas a impedir que alguém fizesse precisamente
aquilo que ele estava a tentar fazer. Felizmente para ele, o troll era bom a
detectá-las e a evitá-las, ainda que, para o conseguir, demorasse um tempo
infinito, como acontecia com qualquer coisa que fizesse, isto porque, para as
evitar era necessário controlar os nervos, o que, diga-se de passagem, era para
ele uma tarefa bem mais difícil do que descobrir os obstáculos. Por fim, após
muito trabalho (sobretudo mental) o troll chegou à entrada das traseiras.
Aterrorizado, com as pernas a tremer, entrou.
A
gruta era um vasto labirinto escavado na rocha. Era húmida e bafienta e o seu
cheiro esquisito fez o assaltante espirrar repetidamente. Como tinha visto a
feiticeira a sair de casa, uma figura humana sobre a neve, na direcção do sopé
das montanhas, avançou menos cautelosamente. Queria ser rápido, pois temia que
ela voltasse.
Chegou
rapidamente a uma câmara com vários metros de altura, atapetada com uma terra
macia e de cor vermelha. Era mais húmida que as outras divisões por onde ele
tinha passado e o ar ali era tão pesado que se tornava quase irrespirável.
Talvez fosse aquele o sítio onde a maçã era colocada no chão, gerando as
estações do ano. Foi então que o troll a viu; uma arca pequena, feita em
madeira e guarnecida a ferro. Imprudente, lançou-se sobre o baú, agarrando-o
como um náufrago agarra uma bóia, conservando-o apertado contra o peito.
Sentou-se no chão, abriu-a e retirou de lá de dentro a pequena maçã, de um
verde brilhante. Comeu-a de uma vez e deixou-se ficar, à espera de sentir o
efeito que, achava ele, o alimento enfeitiçado provocaria. Para sua grande
surpresa e aflição, em vez de se sentir invulnerável, começou a sentir-se
ensonado…muito ensonado. Que estava a acontecer? No momento em que a dúvida o assaltou,
enchendo-o de medo, uma poderosa onda de cansaço invadiu-o e as suas pálpebras
cerraram-se, não lhe dando tempo para encontrar uma resposta.
Quando
acordou, horas mais tarde, e se viu impossibilitado de mover um só músculo que
fosse, pensou que o seu fim estava próximo. Teria a feiticeira voltado,
encontrando-o ali a dormir e, dando pela falta da maçã, decidido castigá-lo?
Continuou a esforçar-se por se levantar, mas o esforço era inútil.
Foi
então que a feiticeira apareceu. O nome assentava-lhe na perfeição: era uma
mulher baixa e muito curvada, avançada em anos. Tinha longos cabelos brancos,
tão compridos que se arrastavam pelo chão, usava um longo manto verde e dela
emanava uma sensação inexplicável de poder e sabedoria. Estudou a expressão do
troll, o seu ar apavorado. Pensou que ele bem merecia uns mil anos de castigo
por ter ousado entrar, sem ser chamado, na sua casa e comido a Maçã das
Estações. Mas esse instinto castigador desvaneceu-se ao lembrar-se de que o
troll era uma pobre alma medrosa que vivia temerosa de tudo e mais alguma
coisa. A Feiticeira Verde nunca conhecera o medo mas calculava que fosse uma
sensação horrível…
-
Porque vieste até mim sem que eu te convidasse? Há algo em que te possa ajudar?
– perguntou, com alguma frieza.
O
troll gaguejou algo incompreensível. Como safar-se desta?
-
Fala! Eu não sou só a Feiticeira Verde, a Rainha das Estações, sou também
adivinha. Sei tudo o que tu sabes, até o que te esforças por me ocultar. Mesmo
assim, quero que sejas tu a falar por ti próprio. – como o troll continuava a
esforçar-se por se mover, acrescentou - Não tentes mexer-te! É melhor para ti.
Temi assustar-te, por isso lancei-te um encantamento para evitar que fugisses
quando eu tentasse falar contigo. Sei que roubaste e comeste a Maçã mágica que
eu guardava aí dentro. – disse, apontando a arca escancarada. – Porque fizeste
isto? Não sabes que é loucura assaltar a casa de uma feiticeira ou tentar
enganá-la? – insistiu ela.
O
troll parecia ter finalmente recuperado a capacidade de falar:
-
Eu…eu…queria comer a maçã para me tornar invulnerável…contaram-me, em tempos,
que a Maçã também tinha esse poder…
-
Foi mal pensado. Eu sei usar magia, ou já te esqueceste dessa parte da
história? A Maçã faz apenas aquilo que eu quero. – pôs-se a enrolar uma madeixa
dos seus cabelos brancos. – Querias tornar-te invulnerável… Porquê?
-
Porque sou muito medroso. Todos os meus dias são passados a tentar nunca me
magoar. Pensava que, se comesse a maçã, poderia pôr de lado essas preocupações
e empregar o tempo a fazer coisas mais úteis sem ter de pensar se fazê-las
seria ou não um risco e…
-
Chega. – disse a Feiticeira Verde. – A Maçã não terá qualquer efeito em ti
porque a roubaste, mas eu posso exercer o meu poder em teu proveito e fá-lo-ei.
Quero apenas que percebas uma coisa, antes disso: não viverás mais nem a tua
vida será melhor por não correres riscos, será apenas vazia e sentir-te-ás como
se estivesses dentro de uma prisão. A morte é algo por que todos teremos de
passar, mais tarde ou mais cedo. Tudo o que vive tem que morrer. Até as
estrelas. Quem somos nós para nos opormos a essa lei intemporal. Deixa que a
tua vida seja preenchida por preocupações menos egoístas… - disse a feiticeira,
olhando-o com o seu olhar verde esmeraldino enquanto erguia lentamente o seu
bastão de madeira trabalhada. O troll soube que, o que quer que ela lhe fosse
fazer, o faria no momento em que baixasse o bastão. – O que te vou dar, troll
medroso, não é a invulnerabilidade, é algo muito melhor. Vou dar-te coragem! -
e baixou o bastão, que tocou no solo, produzindo um som surdo.
Para
contar o resto da história deste troll, antes o mais medroso dos seres do
Universo, basta dizer que, dias depois, mudou de casa, instalando-se do outro
lado das montanhas, perto da sua família.
Tomás Vicente (ex-aluno)
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