Mochos e Corujas
Conta-se
que tempos houve em que as diferentes espécies animais viviam separadas umas
das outras. Cada uma tinha, por assim dizer, o seu reino. Ora, esta história
teve lugar num recanto, algures na Europa, onde se localizava o Reino dos
Mochos e junto a uma grande árvore onde estes se juntavam para discutir
diversos assuntos que eram do seu interesse – pois, como todos sabem, os mochos
foram sempre os mais sábios de entre todos os animais e, como é natural em
pessoas que possuem tal sabedoria, entregavam-se frequentemente a longas
discussões filosóficas aborrecidíssimas, pelas quais apenas eles se
interessavam.
Aconteceu
que, um dia, numa dessas sessões de erudita conversa, se começaram a debruçar
sobre eles próprios e sobre a sua própria natureza, coisa que, como todos sabem
também, é algo muito perigoso e incerto. Depressa entraram em conflito a
propósito da seguinte intervenção de um mocho mais jovem e inexperiente:
-
Então digam-me lá quem é que nasceu primeiro, o mocho ou as orelhas do mocho?
Um
dos mais inteligentes e de espírito mais preparado para as coisas
transcendentes tratou logo de responder:
-
Olha! Que pergunta parva! Qualquer mocho que se preze sabe a resposta: foi o mocho
que apareceu primeiro.
A
esta afirmação seguiu-se uma grande algazarra, pois todos os sábios ali
reunidos se apressaram a debruçar-se sobre o que fora dito e a emitir juízos
diversos. Pode parecer estranho mas, de um grande consenso que antecedera a resposta
do velho mocho, passou-se à maior discórdia, em que todos queriam ver
reconhecida como válida a sua opinião, sempre diferente da do vizinho do lado,
e ninguém concordava com ninguém. É que, apesar de todos considerarem ser
aquela uma pergunta óbvia e saberem a resposta correcta, todos conheciam uma
diferente:
-
O mocho e as orelhas nasceram ao mesmo tempo! – dizia um.
-
Não! Isso não está correcto! Todos sabem que foi o mocho que nasceu primeiro e
depois fez as orelhas! – retorquiu o vizinho.
-
Mas, se assim fosse, o mocho que nasceu primeiro não era um mocho, porque não
tinha orelhas, uma vez que não as poderia fazer nele próprio. – tornou o
primeiro!
-
Porque não? Se ele fosse capaz de criar orelhas, podia fazê-las em si mesmo. –
intervieram três ou quatro.
-
Ora! Onde já se viu um cientista fazer experiências em si próprio!? –
argumentou o primeiro sábio. –
-
Ai, ai! Meus caros amigos, é melhor não entrarmos em tal discussão! –
atreveu-se a dizer um outro, de índole conciliadora.
-
Uuuu! E porque não? Julga que não somos suficientemente inteligentes para
chegar a um acordo? – protestou um, recebendo o apoio de quase todos (é que nem
nisto lhes era possível obter a unanimidade!).
-
Não se trata disso. Ninguém pode negar que somos os sábios dos sábios, mas ouvi
dizer que as galinhas começaram uma discussão semelhante, já lá vão centenas de
anos, e ainda não chegaram a conclusão nenhuma. Parece que é por isso que andam
sempre a cacarejar umas com as outras. Se não me engano, tratava-se de saber
quem é que nasceu primeiro, se foi o ovo ou se foi a galinha.
-
Ora, ora! Afinal, eu tinha razão em dizer que as galinhas são pouco
inteligentes… - ia a dizer um, que foi prontamente interrompido.
-
Tu nunca disseste isso! Cá para mim, estás a querer armar-te em esperto! –
disse o conciliador, que adoptava agora, com evidente prazer, a função oposta.
-
Uuuuuu! Quê? Deves estar a intrujar as minhas orelhas! – que, na terra dos
mochos é como quem diz «deves estar a gozar comigo!». É verdadeiramente
lastimável a quantidade de vezes que eles centram as coisas nas suas orelhas -
Em todo o caso, o problema não é esse: todos sabem que a galinha nasceu
primeiro! – afirmou o que tecera considerações sobre a limitada inteligência
das galinhas.
-
As tuas orelhas devem estar murchas! – o que significa algo como «estás doido!»
- Onde é que já se viu uma galinha que não tenha vindo de um ovo!?
-
Eu nunca vi um ovo que não tivesse saído de uma galinha! – indignou-se o perito
em assuntos de galinhas. Lançaram-se noutra acesa discussão, desta vez sobre o
ovo e a galinha.
Houve,
então, um mocho que, já cansado destas estranhas conversações sobre os
problemas das galinhas que nem elas próprias conseguiam resolver – apesar de a
resposta não lhes interessar muito, pois preferiam que a discussão se
prolongasse indefinidamente e as deixasse acompanhá-la de longos pios e
cacarejos –, teve a sensata (ou insensata) intervenção:
-
Amigos mochos, por que não deixarmos para trás estes problemas galináceos tão
desinteressantes e debruçarmo-nos de novo sobre o tema muito mais estimulante
que é o mocho e as suas orelhas?
Parece
que teve a aprovação de todos - ocorrência que se verificou pela primeira vez
durante e sessão daquele dia -, porque logo retomaram a importante discussão
que levaria – ou, pelo menos, eles assim criam – à descoberta da solução do
problema premente que se instalara, fazendo uma algaraviada ainda maior até
que, no meio de todo aquele barulho, houve uma alma esclarecida que decidiu ir
buscar o Bibliotecário, para que este participasse na discussão e pusesse fim à
disputa.
O
Bibliotecário era um mocho muito velho que já vivera centenas – ou mesmo
milhares - de anos e que era o mais sábio de todos os mochos. Era, na verdade,
o maior sábio de sempre e a sua autoridade em matérias eruditas era
inquestionável – em boa verdade, era inquestionável em qualquer assunto. Sabia
tudo de tudo e, como era um sábio, sabia que o que sabia, todo o saber
conhecido, era incompleto, o que devia obrigar os sábios a procurar sempre mais
alguma peça do puzzle do
conhecimento, ainda que o devessem fazer com moderação.
O
Bibliotecário vivia numa árvore que era tão velha como ele ou mais ainda. Essa
árvore era tão alta que a copa já ficava muito acima das nuvens. Dizia-se que
crescia na mesma medida da sabedoria do Bibliotecário. Era oca e o seu tronco
era muitíssimo largo; era lá dentro que o Bibliotecário vivia e era lá que
estava armazenada a sua biblioteca gigantesca, o grande tesouro do velho mocho.
Não esqueçamos que, para o seu povo, uma biblioteca era a maior das riquezas e
um livro uma jóia de grande valor.
Mas
a distância entre essa árvore e o sítio onde estava a ter lugar a discussão era
muito grande, por isso, quando Bibliotecário chegou, a discussão já durava
havia dois dias e os participante estavam cansados e irritáveis. Assim, o
Bibliotecário recomendou-lhes que fossem dormir um pouco e que de noite
retomariam a análise do tema que estava em estudo.
Depois
de o sol se ter posto, quando já todos estavam muito mais bem-dispostos,
voltaram a juntar-se em torno da tal árvore onde havia tido início o debate.
Depois de ter ouvido todas as opiniões – e eram muitas! –, o Bibliotecário
pronunciou-se sobre o assunto, com a serenidade que lhe era habitual, dizendo:
-
Meus amigos, começastes uma discussão sobre um tema melindroso, do qual nenhum
de nós é senhor. A questão que colocastes é insolúvel, tal como aquela que
vigora entre as galinhas, porque diz respeito ao mais recôndito de cada um de
nós, a nossa criação. Nunca saberemos quem está certo e quem está errado, pois
precisaríamos de um conhecimento tão grande quanto perigoso, conhecimento esse
que, penso eu, nunca estará ao nosso alcance. E, se as minhas suspeitas são
justificadas, é melhor que assim seja. O que devemos, pois, escrever nos livros
que queremos acrescentar às nossas bibliotecas? Devemos registar a verdade,
isto é, que há várias teorias, as quais são as que formulastes; devemos deixar
escrito que, provavelmente, nunca saberemos a verdade e explorar cada uma das
teorias, enumerando-lhes os pontos fracos e fortes. Quem sabe se isso não nos
permitirá, daqui a algum tempo, retomar esta discussão, com mais calma e após
longo estudo, e dar mais alguns passos em direcção à verdade que agora nos
parece inatingível? Tenho dito!
A
assembleia, não obstante saber que o Bibliotecário tinha razão, ficou triste
por não poder chegar a nenhuma conclusão sobre o assunto. Ficaram todos tão
desanimados que o Bibliotecário decidiu contar uma história, em jeito de
compensação, uma história que faria voar o tempo que ainda faltava para o raiar
da aurora. Como a proposta agradou a todos, o idoso mocho aclarou a voz,
começando em seguida:
»
- Aqui neste mesmo lugar, num tempo muito distante, teve início entre os mochos
que então aqui viviam uma discussão muito semelhante à que culminou com a minha
explicação desta noite. Não havia meio de chegarem a um acordo. Lembro-me desse
dia como se fosse hoje, não obstante tudo isto se ter passado há muito mais de
mil anos. Então eu era ainda um jovem mocho… «
A
assembleia soltou um prolongado «Uuuuuuu», pois era-lhes impossível imaginar o
Bibliotecário em novo, uma vez que tanto os seus pais como os seus avós e os
avós destes – e por aí fora – tinham conhecido o Bibliotecário já velho. Era um
tempo demasiado remoto até para a imaginação. O velho mocho continuou…
»
Nessa altura não havia ainda um Bibliotecário, nem ninguém para moderar a
discussão. Os mochos começaram a tomar partidos, a discussão tornou-se
agressiva e as bicadas proliferaram. Eis então que um dos grupos se viu
obrigado a abandonar o nosso reino, agora calmo e belo. Eram cerca de cinquenta
mochos. Voaram para Norte, de dia e de noite, sem descanso. Foi um acto
horrível de se fazer, expulsar assim alguns dos nossos semelhantes. Lembro-me
de o meu pai dizer que este Conselho de Sábios estava maluco…e é bem possível
que estivesse!
Seja
como for, esses nossos irmãos que foram banidos passaram duras provações.
Sofreram muito, uma vez que, banidos da sua terra, estavam condenados a
deambular pelos gelos eternos do Árctico. O frio por que passaram foi tal que,
numa longínqua noite de duro Inverno, as suas orelhas congelaram e,
posteriormente, caíram… «
Chegados
a esse ponto da história, o «Uuuuuuu» transformou-se em
«Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu». Um mocho sem orelhas não era um mocho! E foi isso que
um dos mais novos fez, uma vez mais, notar, ao que o Bibliotecário respondeu:
-
Pois é. Um mocho sem orelhas não é um mocho. Foi assim que surgiram as corujas,
as nossas parentes mais próximas. Estão a ver por que razão vos contei esta
história? Ela demonstra bem os feitos horríveis originados pela ignorância.
Podemos não saber de onde vem o que temos, mas isso não é o mais importante. O
que é mais necessário que se saiba é o que acontece se perdermos o que temos,
para onde vai uma coisa quando desaparece e também as causas do seu
desaparecimento. É importante sabermos isto para podermos evitar que
desapareça. Lembrai-vos disso!
Depois de muito
agradecerem ao Bibliotecário, os mochos foram-se retirando, aos poucos, cada um
seguindo para o seu buraco numa árvore. O sol estava prestes a nascer.
Tomás Vicente (ex-aluno)
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