O
Coração do Mundo
Algumas pessoas acreditam,
pelo menos durante algum tempo, na existência de outros mundos, onde qualquer
um pode dar forma à sua imaginação, e, perante tão agradável perspectiva,
protegem-na ferozmente. Mas há outros, a grande maioria, que preferem acreditar
que o mundo é constituído apenas pela nossa realidade, onde, dizem, não há lugar
nem para o menor salpico de fantasia, vindo do mundo que os primeiros não
cessam de defender ferozmente! Teorias mais rebuscadas à parte, eu prefiro um
meio-termo. No fim de contas, é possível que estejamos todos errados e que a
verdade só se encontre nas histórias. Ora, vejamos o que esta nos diz sobre
isso…
A
noite sem luar estendia-se vagarosamente sobre as copas das árvores, tomando,
com lentidão, o lugar dos derradeiros raios de sol, que tingiam toda a região
com o brilho dourado, frágil e belo do fim do dia. Em pouco tempo, escureceria
por completo e os animais que habitavam aquela longínqua terra sabiam-no muito
bem. Mas, ao contrário do que acontece nas florestas e bosques por onde passeamos
hoje em dia, não corriam a esconder-se nas suas covas e refúgios, antes se
apressavam em direcção a uma grande clareira onde ardia já uma fogueira, um
enorme monte de troncos ao qual fora ateado fogo como que para saudar a noite
que se aproximava. As labaredas acenavam, com a sua luz risonha, a todos os
recém-chegados, bruxuleando suavemente.
Quando
os últimos raios de sol morreram a ocidente, já todos os seres capazes de andar
se encontravam ali. Digo «seres» e não «animais» porque, para qualquer pessoa que
observasse aquela reunião mais de perto, se tornaria rapidamente claro que quem
fazia parte daquele grupo não pertencia à classe de criaturas que habitualmente
designamos por animais. Isto porque, embora a sua forma fosse, por vezes,
semelhante ou igual à de certos animais, todos eles detinham algo que os
animais que vemos comummente não foram talhados para ter: todos eles eram
racionais. Coisa estranha, não é? Mas era assim mesmo!
Estavam
lá presentes representantes de quase todas as raças que, regularmente, supomos
só existirem em mitos: havia faunos, centauros, animais falantes, anões,
duendes travessos e outros que tais. Contemplavam o lume enérgico, cuja luz
ocultava o brilho das estrelas e da lua, que já de si não era muito abundante
naquela noite. Pairava animação sobre a clareira e todos tagarelavam para
passar o tempo, até que chegasse o momento por que esperavam.
Ali,
a vida era pacífica e harmoniosa e não havia inimizades nem as infindáveis
contendas que mancham tantas terras nossas conhecidas. Pertenciam todos à mesma
raça, ainda que com características e aspectos diferentes e nomes ainda mais
díspares! Assim, era possível ver lobisomens a conversar com duendes, fénixes
cantando para alegrar pequenos ouriços-cacheiros falantes, centauros acamaradando
com elfos e assim por diante. Estavam numa terra onde as bruxas não eram
caçadas e a magia era olhada não como desconfiança mas com naturalidade e
maravilhamento. Assim, elas, as velhas curvadas e de longos cabelos sentadas no
meio da multidão, recompensavam os seus pacatos vizinhos com belas
demonstrações da sua arte mágica e esplêndidos fogos-de-artifício.
Nessa
noite, estavam reunidos para recordar a paz e a sua reafirmação, pois, num
tempo muito recuado, o mundo que haviam conhecido estivera ameaçado e a ponto
de ser destruído, até que, no último momento, um homem chamado Merlin, o mais
poderoso feiticeiro de todos os tempos, conseguiu restabelecer a paz e
permitira-lhes voltar a viver tranquilamente. Por isso, a cada ano, naquele
dia, que marcava o aniversário desse grande acontecimento, reuniam-se nessa
clareira para ouvir a história desses tempos antigos, que – assim mandava a
tradição! – era contada sempre pelo mais idoso de todos eles. Nunca se cansavam
de a ouvir, pois era uma história muito bonita e cheia de ensinamentos e era
desse momento que estavam à espera.
Então,
quando a tagarelice estava no seu ponto alto, o grande e velho mocho falante,
que se encontrava destacado do círculo perfeito formado pelos convivas, abriu
repentinamente as asas, pedindo silêncio. Todos os animais se calaram
abruptamente, como que silenciados por um qualquer mago escondido nas sombras
que abundavam para lá da roda de luz da fogueira, no âmago da noite. Abrindo o
sensato bico, o ancião começou a narrar a história, sob a forma de poema, que
era, entre eles, o modo mais popular de contar histórias:
Há muitas
luas distantes,
Cuja
conta certa já não se conhece,
Estava
suspensa por um fino fio
A
salvação deste e do outro mundo,
Pois
furiosa estava a Natureza
Com os
orgulhosos humanos,
Que não
respeitavam nem amavam
Nada do
que na terra existia.
De entre
eles, os piores eram os romanos,
Que
subjugavam todos os anos
Muitos
outros costumes e povos,
Que não
conheciam nem entendiam;
Destruíam
tudo o que outros faziam
E não
obedeciam à lei original,
Que dita
que a diferença é sã e natural.
Tudo
queriam à sua vontade vergar
E nada
tinham vergonha de estragar!
Aos
centauros quase dizimaram
E aos
faunos cruelmente escravizaram…
Já quase
só havia homens no mundo
E todos eles
de espírito imundo.
Aos
druidas sábios chacinaram,
Aos
resistentes e habilidosos anões
Nas
fundas minas encarceraram.
Não
tinha, pois, igual o estrago
Feito
pelos latinos conquistadores,
Que se
esqueceram de ser observadores.
Havia, no
entanto, gente mais poderosa
Que esses
bárbaros civilizados,
Que em
todo o lugar queriam reinar;
Esse povo
era escasso e errante,
Druidas
exilados que, não obstante,
Não
tinham ainda esquecido
O saber
que há muito lhes tinha ensinado
Algum
mestre douto e respeitado.
De todos
os que ainda viviam, tresmalhados,
O maior
era o idoso Merlin, o Sábio,
Que, à
sua passagem pelos campos e matas
Enchia de
alegria as flores das terras fartas
Com o
poder da sua sensata e perene magia,
Que, mais
que da varinha, lhe vinha da sabedoria!
Dos
antigos tempos vira ainda a glória
E da sua
beleza guardava sempre secreta memória.
Foi ele
que soube, certo dia, que a Natureza,
Desesperada
por uma represa
Que
fizesse parar a romana destruição,
Dizia em
altos e contínuos brados:
»
Destruirei o universo em protesto
Para
aniquilar esta ditadura, que detesto! «
O velho
druida, atemorizado pela ameaça
De
destruição do mundo belo,
Que com o
feio e tirânico iria sucumbir,
Decidiu
fazer algo inaudito
E impedir
esse projecto maldito.
Eis o que
congeminou o feiticeiro:
» Dividir
o Mundo em duas partes,
Usando
toda a minha magia,
Deixando
numa a beleza e a claridade
E noutra
a escura e disforme fealdade;
Numa o
que é bom e são,
Noutra o
que é do mal demonstração! «
Assim
labutou o velho Merlin,
Sabendo
que, para uma coisa dividir
Sem essa
mesma coisa assassinar,
Teria que
dela preservar o coração.
Isolou o
Coração da Terra,
Que era
ainda belo e fecundo,
E dividiu
em duas partes
O que
restava dessa grande imensidão;
Para uma
das partes levou os romanos
(E também
os restantes humanos!),
Na outra
estes seres que somos alojou,
Construindo,
depois, uma barreira
Que de
nenhuma maneira
Se
pudesse atravessar,
A não ser
pela imaginação,
Que
concedeu a uns poucos
Que o
espírito tinham ainda são.
Mas tanto
era o mágico poder
Para tal
tarefa utilizado
Que,
chegando ao termo o trabalho
E não
tendo o feiticeiro
Dentro de
si nenhuma gota de magia,
Morreu o
velho Merlin,
Da
salvação o obreiro.
E a
Natureza, viu, então,
Tal
entrega e ao mundo devoção,
Que, por respeito para com ele
E o seu
admirável trabalho,
Se
absteve de transformar
A parte
feia do mundo num borralho;
Antes a
purificou e dela eliminou
Os tontos
romanos, que estavam
Convencidos
de que já só latim
No Mundo
se ouvia e se falava,
Que
apenas de empedradas estradas
A Terra
se decorava.
E o que
fez ela ao Grande Coração?
Lá dentro
sepultou o Mestre Merlin
E, depois
disto feito e acabado,
Consigo
ternamente o tomou
E à Lua
branca e bela o entregou.
Mas esta
história não se finda por aqui
Pois
ainda há que contar,
Se já
disso não me esqueci,
Importante
parte deste grande conto
Que é a
história da divisão do mundo.
É que a
lua pequena é e muito bela,
Mas
resistência é coisa que não tem ela!
O forte e
precioso coração
Começou,
por isso, a consumir-lhe
As suas
escassas forças e a sua energia
E, com o
passar dos anos,
Muito
cansativo e pesado
Se tornou
o fardo carregado
Então,
numa noite de luar,
Que
estava pálido e doentio,
A lua
sentiu que mais não podia.
À Mãe
Natureza pediu perdão
E ajuda,
necessária e desejada,
Pois
estava prestes a desmaiar
E ao seu
fardo largar.
Mas a Mãe
Natureza, que muito longe
Estava,
ocupada com outros assuntos,
Não o
pôde agarrar nem ao mal evitar;
Assim
caiu o Coração do outro lado
Da mágica
barreira dos mundos.
Era,
pois, necessário, quem o fosse salvar!
Mas quem
o poderia fazer?
Essa é
outra história,
Como esta
tão bela mas,
Por já
muito tarde se fazer
E o meu
olho me doer,
Não posso
eu narrar
O que ela
tem para contar!
Estes
últimos seis versos eram da lavra do próprio mocho maroto, que gostava de ver a
assistência protestar, por estar sedenta da história que ele dizia já estar
demasiado ensonado para contar. Tal como esperava, o desagrado benevolente da
assembleia não se fez tardar e o velhote, satisfeito por querem continuar a
ouvi-lo, retomou o fio à meada, introduzindo a nova fase da recitação com mais
uns quantos versos improvisados:
Como ia
eu dizendo…
Eis que,
caindo o Coração da Vida
Na
purificada terra dos homens,
Começou a
perder a força e o vigor,
Pois
determinado tinha o Salvador
Que nunca
mais se havia de juntar
O que
tanto custara a separar.
E também
barreira por Merlin criada
Com o
grandioso e nobre objectivo
De os
dois mundos preservar
Em
cautelosa separação,
Começou a
enfraquecer e deixar
Sobre as
fronteiras o seu controlo afrouxar,
Como um
muro velho e decadente
Em que
inúmeras brechas se abrem.
Como
disto e da obra de Merlin
Nada os
humanos sabiam,
Tínhamos
que ser nós,
Os seres
deste mundo iluminado,
A
solucionar este problema
Que a
todos afectava.
Foi por
isso que, nesse tempo distante,
Se reuniu
aqui mesmo uma assembleia
Para no
tocante a isto tomar uma decisão.
Acordo,
no entanto, não houve entre os sábios,
Sobre o
modo como devíamos proceder,
Até um
meu antepassado a voz ter erguido
Para a todos
comunicar o que fazer,
Segundo o
que lhe ditava o seu saber.
Assim
falou ele, nesse dia que os vivos não viram:
»
Busquemos o lugar onde caiu o Coração,
Pois
podemos nós tocar-lhe
Sem que
nada de maligno aconteça,
Mas
temos, primeiro, que elaborar
Um invólucro
onde o reter e guardar
Pois
vimos já que, sozinha, a Lua
Não o
poderá para sempre suportar. «
Todos
acordaram que sábia
E
acertadamente ele falava
E
alegremente concordaram
Em se
entregar a tal trabalho,
Partindo
logo os anões para as suas minas
Para
fazerem algo digno de revestir
O Coração
que lhes permitia existir;
E
fizeram-no do mais puro diamante,
Para o
coração uma casa brilhante!
Mas ainda
tinham que decidir
Quem
devia executar a busca
Do que se
havia perdido,
Mas,
nessa urgente questão,
Ninguém
com o vizinho concordava;
Diziam
uns que fossem os mais fortes,
Outros
votavam nos mais sábios
E os mais
inteligentes e esclarecidos
Numa
mistura de ambos.
Mas isso
muitos não aceitavam
Por se
verem da demanda excluídos -
Eram
estes os patetas e os fracos,
Em coisa
alguma bem sucedidos.
Perante
tal contenda e dilema,
De novo o
meu pai ancestral
Fez as
suas entendidas palavras
Por toda
a floresta retumbar:
» Se não
acordamos em quem detém,
De entre
nós, mais hipóteses de sucesso,
A consenso
podemos chegar,
Com toda
a certeza e confiança,
Sobre
quem tem disso menos esperança! «
Perguntaram
logo ao velho mocho
Qual era
o seu intento sábio
Para que, tão inoportunamente e sem razão,
Os arrancasse à útil discussão
De caso
tão premente e melindroso
Para os
lançar na procura dos piores
E não, ao
contrário do que a necessidade
Implacável
de momento exigia,
Na busca
urgente dos melhores.
Explicou
então o idoso sábio
Que, não
podendo os melhores ser apurados,
Por
tantos haver com qualidades valorosas,
Deviam
ser os piores seleccionados
Para que, sendo-lhes a missão confiada,
Se tornassem, também eles,
Em seres pelos restantes estimados
E pelo êxito coroados!
Confundidos
ficaram todos os ouvintes,
Sem, no
entanto, ousarem desmentir
O sapiente
ancião, que muito respeitavam,
Pois
reconhecida era a sua sabedoria.
Escolheram,
por isso, os piores
Que de
entre eles puderam designar,
Um magro
e falante gato preto,
A quem o
azar seguia de perto,
E uma
coruja tristonha e velha,
De pios
lamentosos e fatigados,
Entes a
quem a humana raça
Considera
desde sempre como sendo,
De entre
todos os da praça,
Os
portadores do azar e da desgraça.
Do que
eles mais agoirados,
Apenas os
tristes e soturnos noitibós,
Sapos e
rãs, mas esses, de tão azarados,
Infelizes
bichos, esses coitados,
Que nem
falar podiam,
Nem
pensar conseguiam…
Nem por
sombras ali viviam!
Foi-lhes,
por isso, prometido
Que, se o
sucesso os acompanhasse,
Quer na
ida, quer na vinda,
Seria a
sua fama antiga esquecida
E sua
história reconstruída.
E lá
partiram eles, procurando
A fortuna
pretendida, sem, no entanto,
Terem de
a encontrar muitas esperanças.
Mas –
imagine-se! – tiveram sucesso
E o
prometido logo foi cumprido,
Uma vez
que a doença do Mundo curaram.
E as
corujas e os negros gatos
Muito
felizes se tornaram!
Aconteceu ainda estranho caso,
Destes acontecimentos derivado,
Parece que o Coração do Mundo,
Durante o tempo que passaram caído,
Tinha à terra dos homens criado
Grande e abnegada afeição,
Porquanto, desde aí, a cada ano que passa,
Estilhaça o seu brilhante invólucro
No céu do nosso doce lar,
Para logo de seguida se renovar;
Mas cada
um desses estilhaços
Galga a barreira de Merlin
E se fixa num humano coração,
Dando ao seu hospedeiro o dom da Visão,
A aptidão para nos conhecer
E o nosso país feliz observar;
Pois o que lhes bate no peito,
Por ironia do destino,
À primeira vista frio e duro,
É um bem valioso e raro
Que, chamando-se Imaginação,
Não conhece fronteira nem muro!
O
mocho calou-se, observando as expressões dos seus ouvintes. A luz da fogueira
iluminava-lhes os rostos emocionados. Era para eles evidente que Merlin, mesmo
depois de morto, exercia um poder benevolente sobre todos, e achavam isso tão
transcendente como comovente. Como seria possível? Ou talvez não fosse Merlin,
talvez fosse apenas a lembrança da sua existência, a marca que deixara na
grande história do mundo e que ainda jorrava feitos bons como uma ferida
aberta…
Não
podiam, também, deixar de lembrar as palavras desse outro mocho sábio, havia
muito desaparecido, acerca aqueles que tinham sido, em tempos, os piores de
entre eles. É assim que uma comunidade deve agir sempre: os melhores
contribuindo para o aperfeiçoamento dos piores; e a que não o fizer nunca será
uma comunidade feliz, pois tudo o que há de melhor em cada pessoa nasce do
esforço de aceitar e compreender os outros como são – e não como gostaríamos
que fossem.
Tomás Vicente (ex-aluno)
Este texto foi um dos dois textos deste ex-aluno que, com outros escritos de alunos, figurou numa sessão de poesia que se realizou na BE em Março de 2011. Em Janeiro de 2012, foi de novo usado, com o conjunto a que pertence, numa sessão de poesia "Contos e Poemas", que se realizou na BE. Ambas as actividades foram promovidas pela professora Clotilde Mota, em colaboração com a Equipa da BE.
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