31/12/13
27/12/13
Poema Sem Nome
Não é tanto o encargo e a secura das tarefas
Que me pesa na alma como uma tonelada de chumbo;
É mais o temor da escuridão futura,
A ansiedade da antevisão do desgaste
De uma latente vida estéril
O que me derruba dos altos vôos do espírito
E me lança por terra, sumida a centelha de vida
Que em mim havia.
Minhas lágrimas são meus versos.
Tristeza e desespero em mim congelam,
Para correrem livres apenas com o degelo da arte
Em que, ao poucos, se desfaz o glaciar interior.
Tomás Vicente (ex-aluno)
25/12/13
Contos Contados 1: "O Coração do Mundo"
O
Coração do Mundo
Algumas pessoas acreditam,
pelo menos durante algum tempo, na existência de outros mundos, onde qualquer
um pode dar forma à sua imaginação, e, perante tão agradável perspectiva,
protegem-na ferozmente. Mas há outros, a grande maioria, que preferem acreditar
que o mundo é constituído apenas pela nossa realidade, onde, dizem, não há lugar
nem para o menor salpico de fantasia, vindo do mundo que os primeiros não
cessam de defender ferozmente! Teorias mais rebuscadas à parte, eu prefiro um
meio-termo. No fim de contas, é possível que estejamos todos errados e que a
verdade só se encontre nas histórias. Ora, vejamos o que esta nos diz sobre
isso…
A
noite sem luar estendia-se vagarosamente sobre as copas das árvores, tomando,
com lentidão, o lugar dos derradeiros raios de sol, que tingiam toda a região
com o brilho dourado, frágil e belo do fim do dia. Em pouco tempo, escureceria
por completo e os animais que habitavam aquela longínqua terra sabiam-no muito
bem. Mas, ao contrário do que acontece nas florestas e bosques por onde passeamos
hoje em dia, não corriam a esconder-se nas suas covas e refúgios, antes se
apressavam em direcção a uma grande clareira onde ardia já uma fogueira, um
enorme monte de troncos ao qual fora ateado fogo como que para saudar a noite
que se aproximava. As labaredas acenavam, com a sua luz risonha, a todos os
recém-chegados, bruxuleando suavemente.
Quando
os últimos raios de sol morreram a ocidente, já todos os seres capazes de andar
se encontravam ali. Digo «seres» e não «animais» porque, para qualquer pessoa que
observasse aquela reunião mais de perto, se tornaria rapidamente claro que quem
fazia parte daquele grupo não pertencia à classe de criaturas que habitualmente
designamos por animais. Isto porque, embora a sua forma fosse, por vezes,
semelhante ou igual à de certos animais, todos eles detinham algo que os
animais que vemos comummente não foram talhados para ter: todos eles eram
racionais. Coisa estranha, não é? Mas era assim mesmo!
Estavam
lá presentes representantes de quase todas as raças que, regularmente, supomos
só existirem em mitos: havia faunos, centauros, animais falantes, anões,
duendes travessos e outros que tais. Contemplavam o lume enérgico, cuja luz
ocultava o brilho das estrelas e da lua, que já de si não era muito abundante
naquela noite. Pairava animação sobre a clareira e todos tagarelavam para
passar o tempo, até que chegasse o momento por que esperavam.
Ali,
a vida era pacífica e harmoniosa e não havia inimizades nem as infindáveis
contendas que mancham tantas terras nossas conhecidas. Pertenciam todos à mesma
raça, ainda que com características e aspectos diferentes e nomes ainda mais
díspares! Assim, era possível ver lobisomens a conversar com duendes, fénixes
cantando para alegrar pequenos ouriços-cacheiros falantes, centauros acamaradando
com elfos e assim por diante. Estavam numa terra onde as bruxas não eram
caçadas e a magia era olhada não como desconfiança mas com naturalidade e
maravilhamento. Assim, elas, as velhas curvadas e de longos cabelos sentadas no
meio da multidão, recompensavam os seus pacatos vizinhos com belas
demonstrações da sua arte mágica e esplêndidos fogos-de-artifício.
Nessa
noite, estavam reunidos para recordar a paz e a sua reafirmação, pois, num
tempo muito recuado, o mundo que haviam conhecido estivera ameaçado e a ponto
de ser destruído, até que, no último momento, um homem chamado Merlin, o mais
poderoso feiticeiro de todos os tempos, conseguiu restabelecer a paz e
permitira-lhes voltar a viver tranquilamente. Por isso, a cada ano, naquele
dia, que marcava o aniversário desse grande acontecimento, reuniam-se nessa
clareira para ouvir a história desses tempos antigos, que – assim mandava a
tradição! – era contada sempre pelo mais idoso de todos eles. Nunca se cansavam
de a ouvir, pois era uma história muito bonita e cheia de ensinamentos e era
desse momento que estavam à espera.
Então,
quando a tagarelice estava no seu ponto alto, o grande e velho mocho falante,
que se encontrava destacado do círculo perfeito formado pelos convivas, abriu
repentinamente as asas, pedindo silêncio. Todos os animais se calaram
abruptamente, como que silenciados por um qualquer mago escondido nas sombras
que abundavam para lá da roda de luz da fogueira, no âmago da noite. Abrindo o
sensato bico, o ancião começou a narrar a história, sob a forma de poema, que
era, entre eles, o modo mais popular de contar histórias:
Há muitas
luas distantes,
Cuja
conta certa já não se conhece,
Estava
suspensa por um fino fio
A
salvação deste e do outro mundo,
Pois
furiosa estava a Natureza
Com os
orgulhosos humanos,
Que não
respeitavam nem amavam
Nada do
que na terra existia.
De entre
eles, os piores eram os romanos,
Que
subjugavam todos os anos
Muitos
outros costumes e povos,
Que não
conheciam nem entendiam;
Destruíam
tudo o que outros faziam
E não
obedeciam à lei original,
Que dita
que a diferença é sã e natural.
Tudo
queriam à sua vontade vergar
E nada
tinham vergonha de estragar!
Aos
centauros quase dizimaram
E aos
faunos cruelmente escravizaram…
Já quase
só havia homens no mundo
E todos eles
de espírito imundo.
Aos
druidas sábios chacinaram,
Aos
resistentes e habilidosos anões
Nas
fundas minas encarceraram.
Não
tinha, pois, igual o estrago
Feito
pelos latinos conquistadores,
Que se
esqueceram de ser observadores.
Havia, no
entanto, gente mais poderosa
Que esses
bárbaros civilizados,
Que em
todo o lugar queriam reinar;
Esse povo
era escasso e errante,
Druidas
exilados que, não obstante,
Não
tinham ainda esquecido
O saber
que há muito lhes tinha ensinado
Algum
mestre douto e respeitado.
De todos
os que ainda viviam, tresmalhados,
O maior
era o idoso Merlin, o Sábio,
Que, à
sua passagem pelos campos e matas
Enchia de
alegria as flores das terras fartas
Com o
poder da sua sensata e perene magia,
Que, mais
que da varinha, lhe vinha da sabedoria!
Dos
antigos tempos vira ainda a glória
E da sua
beleza guardava sempre secreta memória.
Foi ele
que soube, certo dia, que a Natureza,
Desesperada
por uma represa
Que
fizesse parar a romana destruição,
Dizia em
altos e contínuos brados:
»
Destruirei o universo em protesto
Para
aniquilar esta ditadura, que detesto! «
O velho
druida, atemorizado pela ameaça
De
destruição do mundo belo,
Que com o
feio e tirânico iria sucumbir,
Decidiu
fazer algo inaudito
E impedir
esse projecto maldito.
Eis o que
congeminou o feiticeiro:
» Dividir
o Mundo em duas partes,
Usando
toda a minha magia,
Deixando
numa a beleza e a claridade
E noutra
a escura e disforme fealdade;
Numa o
que é bom e são,
Noutra o
que é do mal demonstração! «
Assim
labutou o velho Merlin,
Sabendo
que, para uma coisa dividir
Sem essa
mesma coisa assassinar,
Teria que
dela preservar o coração.
Isolou o
Coração da Terra,
Que era
ainda belo e fecundo,
E dividiu
em duas partes
O que
restava dessa grande imensidão;
Para uma
das partes levou os romanos
(E também
os restantes humanos!),
Na outra
estes seres que somos alojou,
Construindo,
depois, uma barreira
Que de
nenhuma maneira
Se
pudesse atravessar,
A não ser
pela imaginação,
Que
concedeu a uns poucos
Que o
espírito tinham ainda são.
Mas tanto
era o mágico poder
Para tal
tarefa utilizado
Que,
chegando ao termo o trabalho
E não
tendo o feiticeiro
Dentro de
si nenhuma gota de magia,
Morreu o
velho Merlin,
Da
salvação o obreiro.
E a
Natureza, viu, então,
Tal
entrega e ao mundo devoção,
Que, por respeito para com ele
E o seu
admirável trabalho,
Se
absteve de transformar
A parte
feia do mundo num borralho;
Antes a
purificou e dela eliminou
Os tontos
romanos, que estavam
Convencidos
de que já só latim
No Mundo
se ouvia e se falava,
Que
apenas de empedradas estradas
A Terra
se decorava.
E o que
fez ela ao Grande Coração?
Lá dentro
sepultou o Mestre Merlin
E, depois
disto feito e acabado,
Consigo
ternamente o tomou
E à Lua
branca e bela o entregou.
Mas esta
história não se finda por aqui
Pois
ainda há que contar,
Se já
disso não me esqueci,
Importante
parte deste grande conto
Que é a
história da divisão do mundo.
É que a
lua pequena é e muito bela,
Mas
resistência é coisa que não tem ela!
O forte e
precioso coração
Começou,
por isso, a consumir-lhe
As suas
escassas forças e a sua energia
E, com o
passar dos anos,
Muito
cansativo e pesado
Se tornou
o fardo carregado
Então,
numa noite de luar,
Que
estava pálido e doentio,
A lua
sentiu que mais não podia.
À Mãe
Natureza pediu perdão
E ajuda,
necessária e desejada,
Pois
estava prestes a desmaiar
E ao seu
fardo largar.
Mas a Mãe
Natureza, que muito longe
Estava,
ocupada com outros assuntos,
Não o
pôde agarrar nem ao mal evitar;
Assim
caiu o Coração do outro lado
Da mágica
barreira dos mundos.
Era,
pois, necessário, quem o fosse salvar!
Mas quem
o poderia fazer?
Essa é
outra história,
Como esta
tão bela mas,
Por já
muito tarde se fazer
E o meu
olho me doer,
Não posso
eu narrar
O que ela
tem para contar!
Estes
últimos seis versos eram da lavra do próprio mocho maroto, que gostava de ver a
assistência protestar, por estar sedenta da história que ele dizia já estar
demasiado ensonado para contar. Tal como esperava, o desagrado benevolente da
assembleia não se fez tardar e o velhote, satisfeito por querem continuar a
ouvi-lo, retomou o fio à meada, introduzindo a nova fase da recitação com mais
uns quantos versos improvisados:
Como ia
eu dizendo…
Eis que,
caindo o Coração da Vida
Na
purificada terra dos homens,
Começou a
perder a força e o vigor,
Pois
determinado tinha o Salvador
Que nunca
mais se havia de juntar
O que
tanto custara a separar.
E também
barreira por Merlin criada
Com o
grandioso e nobre objectivo
De os
dois mundos preservar
Em
cautelosa separação,
Começou a
enfraquecer e deixar
Sobre as
fronteiras o seu controlo afrouxar,
Como um
muro velho e decadente
Em que
inúmeras brechas se abrem.
Como
disto e da obra de Merlin
Nada os
humanos sabiam,
Tínhamos
que ser nós,
Os seres
deste mundo iluminado,
A
solucionar este problema
Que a
todos afectava.
Foi por
isso que, nesse tempo distante,
Se reuniu
aqui mesmo uma assembleia
Para no
tocante a isto tomar uma decisão.
Acordo,
no entanto, não houve entre os sábios,
Sobre o
modo como devíamos proceder,
Até um
meu antepassado a voz ter erguido
Para a todos
comunicar o que fazer,
Segundo o
que lhe ditava o seu saber.
Assim
falou ele, nesse dia que os vivos não viram:
»
Busquemos o lugar onde caiu o Coração,
Pois
podemos nós tocar-lhe
Sem que
nada de maligno aconteça,
Mas
temos, primeiro, que elaborar
Um invólucro
onde o reter e guardar
Pois
vimos já que, sozinha, a Lua
Não o
poderá para sempre suportar. «
Todos
acordaram que sábia
E
acertadamente ele falava
E
alegremente concordaram
Em se
entregar a tal trabalho,
Partindo
logo os anões para as suas minas
Para
fazerem algo digno de revestir
O Coração
que lhes permitia existir;
E
fizeram-no do mais puro diamante,
Para o
coração uma casa brilhante!
Mas ainda
tinham que decidir
Quem
devia executar a busca
Do que se
havia perdido,
Mas,
nessa urgente questão,
Ninguém
com o vizinho concordava;
Diziam
uns que fossem os mais fortes,
Outros
votavam nos mais sábios
E os mais
inteligentes e esclarecidos
Numa
mistura de ambos.
Mas isso
muitos não aceitavam
Por se
verem da demanda excluídos -
Eram
estes os patetas e os fracos,
Em coisa
alguma bem sucedidos.
Perante
tal contenda e dilema,
De novo o
meu pai ancestral
Fez as
suas entendidas palavras
Por toda
a floresta retumbar:
» Se não
acordamos em quem detém,
De entre
nós, mais hipóteses de sucesso,
A consenso
podemos chegar,
Com toda
a certeza e confiança,
Sobre
quem tem disso menos esperança! «
Perguntaram
logo ao velho mocho
Qual era
o seu intento sábio
Para que, tão inoportunamente e sem razão,
Os arrancasse à útil discussão
De caso
tão premente e melindroso
Para os
lançar na procura dos piores
E não, ao
contrário do que a necessidade
Implacável
de momento exigia,
Na busca
urgente dos melhores.
Explicou
então o idoso sábio
Que, não
podendo os melhores ser apurados,
Por
tantos haver com qualidades valorosas,
Deviam
ser os piores seleccionados
Para que, sendo-lhes a missão confiada,
Se tornassem, também eles,
Em seres pelos restantes estimados
E pelo êxito coroados!
Confundidos
ficaram todos os ouvintes,
Sem, no
entanto, ousarem desmentir
O sapiente
ancião, que muito respeitavam,
Pois
reconhecida era a sua sabedoria.
Escolheram,
por isso, os piores
Que de
entre eles puderam designar,
Um magro
e falante gato preto,
A quem o
azar seguia de perto,
E uma
coruja tristonha e velha,
De pios
lamentosos e fatigados,
Entes a
quem a humana raça
Considera
desde sempre como sendo,
De entre
todos os da praça,
Os
portadores do azar e da desgraça.
Do que
eles mais agoirados,
Apenas os
tristes e soturnos noitibós,
Sapos e
rãs, mas esses, de tão azarados,
Infelizes
bichos, esses coitados,
Que nem
falar podiam,
Nem
pensar conseguiam…
Nem por
sombras ali viviam!
Foi-lhes,
por isso, prometido
Que, se o
sucesso os acompanhasse,
Quer na
ida, quer na vinda,
Seria a
sua fama antiga esquecida
E sua
história reconstruída.
E lá
partiram eles, procurando
A fortuna
pretendida, sem, no entanto,
Terem de
a encontrar muitas esperanças.
Mas –
imagine-se! – tiveram sucesso
E o
prometido logo foi cumprido,
Uma vez
que a doença do Mundo curaram.
E as
corujas e os negros gatos
Muito
felizes se tornaram!
Aconteceu ainda estranho caso,
Destes acontecimentos derivado,
Parece que o Coração do Mundo,
Durante o tempo que passaram caído,
Tinha à terra dos homens criado
Grande e abnegada afeição,
Porquanto, desde aí, a cada ano que passa,
Estilhaça o seu brilhante invólucro
No céu do nosso doce lar,
Para logo de seguida se renovar;
Mas cada
um desses estilhaços
Galga a barreira de Merlin
E se fixa num humano coração,
Dando ao seu hospedeiro o dom da Visão,
A aptidão para nos conhecer
E o nosso país feliz observar;
Pois o que lhes bate no peito,
Por ironia do destino,
À primeira vista frio e duro,
É um bem valioso e raro
Que, chamando-se Imaginação,
Não conhece fronteira nem muro!
O
mocho calou-se, observando as expressões dos seus ouvintes. A luz da fogueira
iluminava-lhes os rostos emocionados. Era para eles evidente que Merlin, mesmo
depois de morto, exercia um poder benevolente sobre todos, e achavam isso tão
transcendente como comovente. Como seria possível? Ou talvez não fosse Merlin,
talvez fosse apenas a lembrança da sua existência, a marca que deixara na
grande história do mundo e que ainda jorrava feitos bons como uma ferida
aberta…
Não
podiam, também, deixar de lembrar as palavras desse outro mocho sábio, havia
muito desaparecido, acerca aqueles que tinham sido, em tempos, os piores de
entre eles. É assim que uma comunidade deve agir sempre: os melhores
contribuindo para o aperfeiçoamento dos piores; e a que não o fizer nunca será
uma comunidade feliz, pois tudo o que há de melhor em cada pessoa nasce do
esforço de aceitar e compreender os outros como são – e não como gostaríamos
que fossem.
Tomás Vicente (ex-aluno)
Este texto foi um dos dois textos deste ex-aluno que, com outros escritos de alunos, figurou numa sessão de poesia que se realizou na BE em Março de 2011. Em Janeiro de 2012, foi de novo usado, com o conjunto a que pertence, numa sessão de poesia "Contos e Poemas", que se realizou na BE. Ambas as actividades foram promovidas pela professora Clotilde Mota, em colaboração com a Equipa da BE.
24/12/13
Contos Contados 2: "Mochos e Corujas"
Mochos e Corujas
Conta-se
que tempos houve em que as diferentes espécies animais viviam separadas umas
das outras. Cada uma tinha, por assim dizer, o seu reino. Ora, esta história
teve lugar num recanto, algures na Europa, onde se localizava o Reino dos
Mochos e junto a uma grande árvore onde estes se juntavam para discutir
diversos assuntos que eram do seu interesse – pois, como todos sabem, os mochos
foram sempre os mais sábios de entre todos os animais e, como é natural em
pessoas que possuem tal sabedoria, entregavam-se frequentemente a longas
discussões filosóficas aborrecidíssimas, pelas quais apenas eles se
interessavam.
Aconteceu
que, um dia, numa dessas sessões de erudita conversa, se começaram a debruçar
sobre eles próprios e sobre a sua própria natureza, coisa que, como todos sabem
também, é algo muito perigoso e incerto. Depressa entraram em conflito a
propósito da seguinte intervenção de um mocho mais jovem e inexperiente:
-
Então digam-me lá quem é que nasceu primeiro, o mocho ou as orelhas do mocho?
Um
dos mais inteligentes e de espírito mais preparado para as coisas
transcendentes tratou logo de responder:
-
Olha! Que pergunta parva! Qualquer mocho que se preze sabe a resposta: foi o mocho
que apareceu primeiro.
A
esta afirmação seguiu-se uma grande algazarra, pois todos os sábios ali
reunidos se apressaram a debruçar-se sobre o que fora dito e a emitir juízos
diversos. Pode parecer estranho mas, de um grande consenso que antecedera a resposta
do velho mocho, passou-se à maior discórdia, em que todos queriam ver
reconhecida como válida a sua opinião, sempre diferente da do vizinho do lado,
e ninguém concordava com ninguém. É que, apesar de todos considerarem ser
aquela uma pergunta óbvia e saberem a resposta correcta, todos conheciam uma
diferente:
-
O mocho e as orelhas nasceram ao mesmo tempo! – dizia um.
-
Não! Isso não está correcto! Todos sabem que foi o mocho que nasceu primeiro e
depois fez as orelhas! – retorquiu o vizinho.
-
Mas, se assim fosse, o mocho que nasceu primeiro não era um mocho, porque não
tinha orelhas, uma vez que não as poderia fazer nele próprio. – tornou o
primeiro!
-
Porque não? Se ele fosse capaz de criar orelhas, podia fazê-las em si mesmo. –
intervieram três ou quatro.
-
Ora! Onde já se viu um cientista fazer experiências em si próprio!? –
argumentou o primeiro sábio. –
-
Ai, ai! Meus caros amigos, é melhor não entrarmos em tal discussão! –
atreveu-se a dizer um outro, de índole conciliadora.
-
Uuuu! E porque não? Julga que não somos suficientemente inteligentes para
chegar a um acordo? – protestou um, recebendo o apoio de quase todos (é que nem
nisto lhes era possível obter a unanimidade!).
-
Não se trata disso. Ninguém pode negar que somos os sábios dos sábios, mas ouvi
dizer que as galinhas começaram uma discussão semelhante, já lá vão centenas de
anos, e ainda não chegaram a conclusão nenhuma. Parece que é por isso que andam
sempre a cacarejar umas com as outras. Se não me engano, tratava-se de saber
quem é que nasceu primeiro, se foi o ovo ou se foi a galinha.
-
Ora, ora! Afinal, eu tinha razão em dizer que as galinhas são pouco
inteligentes… - ia a dizer um, que foi prontamente interrompido.
-
Tu nunca disseste isso! Cá para mim, estás a querer armar-te em esperto! –
disse o conciliador, que adoptava agora, com evidente prazer, a função oposta.
-
Uuuuuu! Quê? Deves estar a intrujar as minhas orelhas! – que, na terra dos
mochos é como quem diz «deves estar a gozar comigo!». É verdadeiramente
lastimável a quantidade de vezes que eles centram as coisas nas suas orelhas -
Em todo o caso, o problema não é esse: todos sabem que a galinha nasceu
primeiro! – afirmou o que tecera considerações sobre a limitada inteligência
das galinhas.
-
As tuas orelhas devem estar murchas! – o que significa algo como «estás doido!»
- Onde é que já se viu uma galinha que não tenha vindo de um ovo!?
-
Eu nunca vi um ovo que não tivesse saído de uma galinha! – indignou-se o perito
em assuntos de galinhas. Lançaram-se noutra acesa discussão, desta vez sobre o
ovo e a galinha.
Houve,
então, um mocho que, já cansado destas estranhas conversações sobre os
problemas das galinhas que nem elas próprias conseguiam resolver – apesar de a
resposta não lhes interessar muito, pois preferiam que a discussão se
prolongasse indefinidamente e as deixasse acompanhá-la de longos pios e
cacarejos –, teve a sensata (ou insensata) intervenção:
-
Amigos mochos, por que não deixarmos para trás estes problemas galináceos tão
desinteressantes e debruçarmo-nos de novo sobre o tema muito mais estimulante
que é o mocho e as suas orelhas?
Parece
que teve a aprovação de todos - ocorrência que se verificou pela primeira vez
durante e sessão daquele dia -, porque logo retomaram a importante discussão
que levaria – ou, pelo menos, eles assim criam – à descoberta da solução do
problema premente que se instalara, fazendo uma algaraviada ainda maior até
que, no meio de todo aquele barulho, houve uma alma esclarecida que decidiu ir
buscar o Bibliotecário, para que este participasse na discussão e pusesse fim à
disputa.
O
Bibliotecário era um mocho muito velho que já vivera centenas – ou mesmo
milhares - de anos e que era o mais sábio de todos os mochos. Era, na verdade,
o maior sábio de sempre e a sua autoridade em matérias eruditas era
inquestionável – em boa verdade, era inquestionável em qualquer assunto. Sabia
tudo de tudo e, como era um sábio, sabia que o que sabia, todo o saber
conhecido, era incompleto, o que devia obrigar os sábios a procurar sempre mais
alguma peça do puzzle do
conhecimento, ainda que o devessem fazer com moderação.
O
Bibliotecário vivia numa árvore que era tão velha como ele ou mais ainda. Essa
árvore era tão alta que a copa já ficava muito acima das nuvens. Dizia-se que
crescia na mesma medida da sabedoria do Bibliotecário. Era oca e o seu tronco
era muitíssimo largo; era lá dentro que o Bibliotecário vivia e era lá que
estava armazenada a sua biblioteca gigantesca, o grande tesouro do velho mocho.
Não esqueçamos que, para o seu povo, uma biblioteca era a maior das riquezas e
um livro uma jóia de grande valor.
Mas
a distância entre essa árvore e o sítio onde estava a ter lugar a discussão era
muito grande, por isso, quando Bibliotecário chegou, a discussão já durava
havia dois dias e os participante estavam cansados e irritáveis. Assim, o
Bibliotecário recomendou-lhes que fossem dormir um pouco e que de noite
retomariam a análise do tema que estava em estudo.
Depois
de o sol se ter posto, quando já todos estavam muito mais bem-dispostos,
voltaram a juntar-se em torno da tal árvore onde havia tido início o debate.
Depois de ter ouvido todas as opiniões – e eram muitas! –, o Bibliotecário
pronunciou-se sobre o assunto, com a serenidade que lhe era habitual, dizendo:
-
Meus amigos, começastes uma discussão sobre um tema melindroso, do qual nenhum
de nós é senhor. A questão que colocastes é insolúvel, tal como aquela que
vigora entre as galinhas, porque diz respeito ao mais recôndito de cada um de
nós, a nossa criação. Nunca saberemos quem está certo e quem está errado, pois
precisaríamos de um conhecimento tão grande quanto perigoso, conhecimento esse
que, penso eu, nunca estará ao nosso alcance. E, se as minhas suspeitas são
justificadas, é melhor que assim seja. O que devemos, pois, escrever nos livros
que queremos acrescentar às nossas bibliotecas? Devemos registar a verdade,
isto é, que há várias teorias, as quais são as que formulastes; devemos deixar
escrito que, provavelmente, nunca saberemos a verdade e explorar cada uma das
teorias, enumerando-lhes os pontos fracos e fortes. Quem sabe se isso não nos
permitirá, daqui a algum tempo, retomar esta discussão, com mais calma e após
longo estudo, e dar mais alguns passos em direcção à verdade que agora nos
parece inatingível? Tenho dito!
A
assembleia, não obstante saber que o Bibliotecário tinha razão, ficou triste
por não poder chegar a nenhuma conclusão sobre o assunto. Ficaram todos tão
desanimados que o Bibliotecário decidiu contar uma história, em jeito de
compensação, uma história que faria voar o tempo que ainda faltava para o raiar
da aurora. Como a proposta agradou a todos, o idoso mocho aclarou a voz,
começando em seguida:
»
- Aqui neste mesmo lugar, num tempo muito distante, teve início entre os mochos
que então aqui viviam uma discussão muito semelhante à que culminou com a minha
explicação desta noite. Não havia meio de chegarem a um acordo. Lembro-me desse
dia como se fosse hoje, não obstante tudo isto se ter passado há muito mais de
mil anos. Então eu era ainda um jovem mocho… «
A
assembleia soltou um prolongado «Uuuuuuu», pois era-lhes impossível imaginar o
Bibliotecário em novo, uma vez que tanto os seus pais como os seus avós e os
avós destes – e por aí fora – tinham conhecido o Bibliotecário já velho. Era um
tempo demasiado remoto até para a imaginação. O velho mocho continuou…
»
Nessa altura não havia ainda um Bibliotecário, nem ninguém para moderar a
discussão. Os mochos começaram a tomar partidos, a discussão tornou-se
agressiva e as bicadas proliferaram. Eis então que um dos grupos se viu
obrigado a abandonar o nosso reino, agora calmo e belo. Eram cerca de cinquenta
mochos. Voaram para Norte, de dia e de noite, sem descanso. Foi um acto
horrível de se fazer, expulsar assim alguns dos nossos semelhantes. Lembro-me
de o meu pai dizer que este Conselho de Sábios estava maluco…e é bem possível
que estivesse!
Seja
como for, esses nossos irmãos que foram banidos passaram duras provações.
Sofreram muito, uma vez que, banidos da sua terra, estavam condenados a
deambular pelos gelos eternos do Árctico. O frio por que passaram foi tal que,
numa longínqua noite de duro Inverno, as suas orelhas congelaram e,
posteriormente, caíram… «
Chegados
a esse ponto da história, o «Uuuuuuu» transformou-se em
«Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu». Um mocho sem orelhas não era um mocho! E foi isso que
um dos mais novos fez, uma vez mais, notar, ao que o Bibliotecário respondeu:
-
Pois é. Um mocho sem orelhas não é um mocho. Foi assim que surgiram as corujas,
as nossas parentes mais próximas. Estão a ver por que razão vos contei esta
história? Ela demonstra bem os feitos horríveis originados pela ignorância.
Podemos não saber de onde vem o que temos, mas isso não é o mais importante. O
que é mais necessário que se saiba é o que acontece se perdermos o que temos,
para onde vai uma coisa quando desaparece e também as causas do seu
desaparecimento. É importante sabermos isto para podermos evitar que
desapareça. Lembrai-vos disso!
Depois de muito
agradecerem ao Bibliotecário, os mochos foram-se retirando, aos poucos, cada um
seguindo para o seu buraco numa árvore. O sol estava prestes a nascer.
Tomás Vicente (ex-aluno)
23/12/13
Contos Contados 3: "A Maçã"
A Maçã
Esta
é a história de um troll. Contudo, o troll desta história não era um troll como
os outros: era um troll muito - mas mesmo muito! – medroso. Tinha medo de tudo
– ou quase.
Como
tinha muito medo dos seus semelhantes, foi viver para a parte mais remota das
montanhas onde viviam todos os da sua espécie, numa zona onde não havia
vivalma. Lá, apesar de já não ter tanto medo dos outros trolls, dedicava-se a
ter medo de outras coisas. Tinha medo que as árvores lhe caíssem em cima, tinha
medo de se cortar nas facas que utilizava diariamente, tinha medo que as
feridas infectassem. Imagine-se que até tinha medo dos homens! É verdade, tinha
medo dos homens, que podia, se lhe apetecesse, esborrachar com o pé! É que, por
serem pequenos, ainda o assustavam mais. Os homens estavam para ele como os
ratos para os elefantes. Mas acima de tudo, o troll tinha medo de morrer.
Só
num dia, imaginava centenas de situações que lhe pudessem causar a morte e
passava a vida a tentar evitá-las a todo o custo, daí que tudo o que fizesse
demorasse imenso tempo a concluir pois, antes de fazer o que quer que fosse, o
troll pensava demoradamente nos riscos que isso poderia envolver e gastava
ainda mais tempo a pensar em todas as maneiras possíveis de os contornar,
tentando escolher em seguida qual a mais segura.
Antes
de ir para a cama, falava muitas vezes para com os seus botões sobre o dia que
tinha chegado ao fim, um dia inteiramente dedicado a pensar na própria segurança,
como, aliás, eram todos os outros. O que dizia a si próprio em tais ocasiões
era sempre essencialmente o mesmo.
-
Ai! Hoje foi um dia bem passado. Não corri perigo nenhum. Foi muito agradável.
– depois parava e pensava, por vezes, nos seus antigos vizinhos (os que tivera
enquanto se atrevera a permanecer entre os seus) – Os outros, se me ouvissem
falar assim, diriam que sou medroso. Pelo menos tenho hipóteses de poder morrer
velho, sem sentir nada. – considerava. Mas logo a seguir, apesar de não ser
velho e de, provavelmente não ter de se preocupar com a velhice ainda durante
muito tempo, assomava ao limiar da sua consciência o pânico incontrolável e
incontornável que tantas vezes o dominava. Como seria ir para a cama e nunca
mais acordar? Devia ser horrível…como cair eternamente num buraco sem fundo!
Refugiava-se imediatamente debaixo dos lençóis, como uma criança pequena, e
chamava pela sua mãe, que não o podia ouvir porque vivia no lado oposto das
montanhas.
Os
seus dias eram uma sequência de aflições provocadas pelo seu carácter medroso.
Por muito que se esforçasse para evitar qualquer situação que envolvesse o
menor risco, os acidentes aconteciam-lhe do mesmo modo que acontecem a qualquer
ser vivo, isto é, quando menos esperava. Assim, o pobre troll não podia evitar
certos “azares domésticos” como cortes e esfoladelas – coisa que, como disso
atrás, muito o preocupava. Quando isso acontecia ficava em pânico. A sua
imaginação extremamente fértil começava logo a trabalhar, inventando inúmeras
maneiras de o sucedido poder contribuir para a sua morte prematura. Um dia,
depois de um desses acidentes, que, por acaso, até o fez derramar uma ou outra
gota de sangue, decidiu que aquilo de que precisava era de se tornar imortal
ou, pelo menos, “menos vulnerável”.
O
troll lembrava-se de histórias que ouvira na sua infância – e que, na altura, o
tinham enchido de medo – sobre uma velha bruxa humana que vivia numa gruta, não
muito longe dali, a quem os habitantes das redondezas chamavam « a Feiticeira
Verde». Segundo as histórias, a Feiticeira Verde tinha uma maçã mágica que
usava para dar continuidade à sucessão das estações do ano. Na Primavera
apoiava a parte de baixo da maçã no solo e por todo o lado o verde se tornava
abundante; no Verão enterrava-a completamente e tudo atingia o seu auge. No
Outono desenterrava o fruto e apoiava a parte de cima no solo, criando o
fenómeno inverso, ou seja, as folhas caíam; no Inverno encerrava-o num pequeno
cofre.
Além
disso, segundo o que constava, essa maçã mágica atribuía a invulnerabilidade a
quem a comesse e o nosso pobre troll há muito, que havia muito a desejava
roubar, resolveu-se, depois de mais alguns pequenos azares, a levar o seu
intento por diante. Ora, isso aconteceu no Inverno, altura em que a maçã da
bruxa estava na caixa. Todo contente, pensou que não havia melhor altura para a
roubar, pois ninguém notaria diferença nenhuma, uma vez que o dito fruto já não
estava em contacto com a terra, e a feiticeira só daria pela falta dela quando
chegasse a altura de o Inverno ceder o lugar à Primavera. Claro que o bicho
medroso nunca se lembrou que, no caso de ser bem sucedido, estava a condenar a
Natureza a um Inverno perpétuo e começou a preparar-se, mas isso também
requeria muita coragem, que era aquilo que ele tinha em menor quantidade, e
demorou muito tempo a meter ombros à viagem.
Um
dia, quando, finalmente, conseguiu reunir a coragem necessária, pôs-se a
caminho. Não era fácil chegar à gruta da feiticeira, que estava protegida por
numerosas armadilhas destinadas a impedir que alguém fizesse precisamente
aquilo que ele estava a tentar fazer. Felizmente para ele, o troll era bom a
detectá-las e a evitá-las, ainda que, para o conseguir, demorasse um tempo
infinito, como acontecia com qualquer coisa que fizesse, isto porque, para as
evitar era necessário controlar os nervos, o que, diga-se de passagem, era para
ele uma tarefa bem mais difícil do que descobrir os obstáculos. Por fim, após
muito trabalho (sobretudo mental) o troll chegou à entrada das traseiras.
Aterrorizado, com as pernas a tremer, entrou.
A
gruta era um vasto labirinto escavado na rocha. Era húmida e bafienta e o seu
cheiro esquisito fez o assaltante espirrar repetidamente. Como tinha visto a
feiticeira a sair de casa, uma figura humana sobre a neve, na direcção do sopé
das montanhas, avançou menos cautelosamente. Queria ser rápido, pois temia que
ela voltasse.
Chegou
rapidamente a uma câmara com vários metros de altura, atapetada com uma terra
macia e de cor vermelha. Era mais húmida que as outras divisões por onde ele
tinha passado e o ar ali era tão pesado que se tornava quase irrespirável.
Talvez fosse aquele o sítio onde a maçã era colocada no chão, gerando as
estações do ano. Foi então que o troll a viu; uma arca pequena, feita em
madeira e guarnecida a ferro. Imprudente, lançou-se sobre o baú, agarrando-o
como um náufrago agarra uma bóia, conservando-o apertado contra o peito.
Sentou-se no chão, abriu-a e retirou de lá de dentro a pequena maçã, de um
verde brilhante. Comeu-a de uma vez e deixou-se ficar, à espera de sentir o
efeito que, achava ele, o alimento enfeitiçado provocaria. Para sua grande
surpresa e aflição, em vez de se sentir invulnerável, começou a sentir-se
ensonado…muito ensonado. Que estava a acontecer? No momento em que a dúvida o assaltou,
enchendo-o de medo, uma poderosa onda de cansaço invadiu-o e as suas pálpebras
cerraram-se, não lhe dando tempo para encontrar uma resposta.
Quando
acordou, horas mais tarde, e se viu impossibilitado de mover um só músculo que
fosse, pensou que o seu fim estava próximo. Teria a feiticeira voltado,
encontrando-o ali a dormir e, dando pela falta da maçã, decidido castigá-lo?
Continuou a esforçar-se por se levantar, mas o esforço era inútil.
Foi
então que a feiticeira apareceu. O nome assentava-lhe na perfeição: era uma
mulher baixa e muito curvada, avançada em anos. Tinha longos cabelos brancos,
tão compridos que se arrastavam pelo chão, usava um longo manto verde e dela
emanava uma sensação inexplicável de poder e sabedoria. Estudou a expressão do
troll, o seu ar apavorado. Pensou que ele bem merecia uns mil anos de castigo
por ter ousado entrar, sem ser chamado, na sua casa e comido a Maçã das
Estações. Mas esse instinto castigador desvaneceu-se ao lembrar-se de que o
troll era uma pobre alma medrosa que vivia temerosa de tudo e mais alguma
coisa. A Feiticeira Verde nunca conhecera o medo mas calculava que fosse uma
sensação horrível…
-
Porque vieste até mim sem que eu te convidasse? Há algo em que te possa ajudar?
– perguntou, com alguma frieza.
O
troll gaguejou algo incompreensível. Como safar-se desta?
-
Fala! Eu não sou só a Feiticeira Verde, a Rainha das Estações, sou também
adivinha. Sei tudo o que tu sabes, até o que te esforças por me ocultar. Mesmo
assim, quero que sejas tu a falar por ti próprio. – como o troll continuava a
esforçar-se por se mover, acrescentou - Não tentes mexer-te! É melhor para ti.
Temi assustar-te, por isso lancei-te um encantamento para evitar que fugisses
quando eu tentasse falar contigo. Sei que roubaste e comeste a Maçã mágica que
eu guardava aí dentro. – disse, apontando a arca escancarada. – Porque fizeste
isto? Não sabes que é loucura assaltar a casa de uma feiticeira ou tentar
enganá-la? – insistiu ela.
O
troll parecia ter finalmente recuperado a capacidade de falar:
-
Eu…eu…queria comer a maçã para me tornar invulnerável…contaram-me, em tempos,
que a Maçã também tinha esse poder…
-
Foi mal pensado. Eu sei usar magia, ou já te esqueceste dessa parte da
história? A Maçã faz apenas aquilo que eu quero. – pôs-se a enrolar uma madeixa
dos seus cabelos brancos. – Querias tornar-te invulnerável… Porquê?
-
Porque sou muito medroso. Todos os meus dias são passados a tentar nunca me
magoar. Pensava que, se comesse a maçã, poderia pôr de lado essas preocupações
e empregar o tempo a fazer coisas mais úteis sem ter de pensar se fazê-las
seria ou não um risco e…
-
Chega. – disse a Feiticeira Verde. – A Maçã não terá qualquer efeito em ti
porque a roubaste, mas eu posso exercer o meu poder em teu proveito e fá-lo-ei.
Quero apenas que percebas uma coisa, antes disso: não viverás mais nem a tua
vida será melhor por não correres riscos, será apenas vazia e sentir-te-ás como
se estivesses dentro de uma prisão. A morte é algo por que todos teremos de
passar, mais tarde ou mais cedo. Tudo o que vive tem que morrer. Até as
estrelas. Quem somos nós para nos opormos a essa lei intemporal. Deixa que a
tua vida seja preenchida por preocupações menos egoístas… - disse a feiticeira,
olhando-o com o seu olhar verde esmeraldino enquanto erguia lentamente o seu
bastão de madeira trabalhada. O troll soube que, o que quer que ela lhe fosse
fazer, o faria no momento em que baixasse o bastão. – O que te vou dar, troll
medroso, não é a invulnerabilidade, é algo muito melhor. Vou dar-te coragem! -
e baixou o bastão, que tocou no solo, produzindo um som surdo.
Para
contar o resto da história deste troll, antes o mais medroso dos seres do
Universo, basta dizer que, dias depois, mudou de casa, instalando-se do outro
lado das montanhas, perto da sua família.
Tomás Vicente (ex-aluno)
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