III
Desfiguração
A caneta renega as letras,
O lápis renuncia ao
movimento, em protesto;
O papel geme quando se lhe
escrevem
As ásperas barbaridades
Que agora proliferam.
Desde sempre foram eles
Companheiros fiéis da mão
que escreve,
Mas instrumento algum pode
ainda dançar
Sobre a alvura das folhas
lisas
Porque dor imensa lhes causa
A desfiguração da língua que
amavam.
Esta é agora insípida, não
existe
Porque não a determinou o
tempo e as gentes,
Antes um pequeno número
De néscias assinaturas
Sobre um infame tratado
Que se destina a, como no
mundo é frequente,
Descurar o que é certo
Em prol dos interesses de
alguma cobra
Que, secreta, se aventura no
ventre da noite
Para a coberto do secretismo
Desferir o cobarde golpe.
No entanto, o que não existe
é volátil,
Instável como um castelo de
cartas
E um certeiro e suave golpe
de vento
Pode derrubá-lo a qualquer
altura.
Assim, lápis e caneta,
Papel e aparo, bloco de
notas,
Borracha e marcador
Cobrem-se de altruísta
submissão
E esperam, encobertos pelo
véu da razão,
O dia em que o feio castelo
de cartas
Caia redondo no chão
Para em seu lugar erguerem
Outro que, de direito, se
erga
Sobre as enseadas marítimas
Onde ainda, trazidas na
crista das vagas,
As mudas consoantes
murmurejam
As canções de quem não é
ouvido
E os hífenes ligam o Rei do
castelo
Ao povo nas areias do olvido.
Mas o Rei dar-lhes-á
dignidade
E maiúsculas altivas para,
se assim desejarem,
Mudarem o que não estiver
bem,
Deixando, no entanto, ao
tempo
O que aos séculos pertence.
Resta agora saber
Se o tempo matreiro
Terão os detentores de tal
esperança
Por fiel companheiro.
Também quem escreve sofre,
Vendo que, por serem
cobardes e saberem
Que há muitos que o não são,
Fizeram sair a língua
portuguesa
Discretamente pelos
bastidores,
Pondo outra decrépita em seu
lugar,
Por saberem que, saísse ela
pela porta da frente,
Muitas vaias justas os
perseguiriam
E haveria alguém que
aferrolhasse a entrada
Antes da triste saída dela.
Mas o poeta está triste
demais
Para fazer como seus
apetrechos
E esconder a eruptiva alma
incandescente
Por detrás de uma cortina de
cinzas.
Ademais, o poeta morrerá em
breve,
Ainda que vivo fique o corpo
humano,
Se apartado for da sua musa,
Enquanto os instrumentos da
Palavra
Podem aguardar a eternidade.
Restar-lhe-ia, assim,
procurar outra musa
E usar esta nova defeituosa
ferramenta
Até a antiga primorosa – ou
outra nova –
Encontrar.
Mas a sorte também piedosa
se pode mostrar,
Cuidando que, se a conhecida
musa
Não lhe devolver a tempo de
o salvar,
Fornecer-lhe-á dela uma
miragem
Que para ele existirá
Nos profundos sonhos do
coração.
Assim guarnecido, poderá
esperar
Pelo que o tempo a todos
devolverá.
Esperemos pois com ele
E o tempo não falhará
Em devolver o que alguém nos
arrancou.
Tomás Santos
IV
Sátira ao Professor Malaca Casteleiro
» Diz lá Malaca Casteleiro
De que se faz o teu jardim!
«
» De acentos e mudas
consoantes
Mas não é bem um jardim,
É mais uma verde e viçosa
horta
Pois, quando o tempo das
colheitas
Bate discretamente à porta,
Lá vou eu para a minha
horta
Colher o que lá semeei
E podar os galhos de
hífenes,
Que crescem céleres como
líquenes.
Tiro também as consoantes de
secura textual
Que, ao caírem, quase não se
notam,
Só um rumor suave soltam,
De quem abre a seguinte
vogal. «
Mas eu acho isto mal,
Acho que não é coisa
natural
Ceifar-se assim um pomar
Que dá bons frutos das
flores a desabrochar;
E ainda acho pior a ofensa
Por ter sido apadrinhada
Por um linguista
(linguarudo) de "meia-tigelada" -
e português! -, que só me
merece uma sentença:
Que, gentilmente, sem mais
detença,
Se esqueçam os seus feitos
duvidosos
E os seus méritos ociosos,
E que do olvido sejam
pertença!
Não percebo como pode
Alguém de tão nobre ofício
Fazer este ortográfico
sacrifício
Que, terramoto, o edifício
da língua sacode.
Bem sei que as palavras
minhas
São de pouca monta,
Como opor ao vento forte as
fracas joaninhas,
E que a minha opinião não
conta.
Ainda assim,
"sábio" professor,
Que, por isto teres obrado,
te sei um tolo
E do teu erróneo acordo sei,
de cor,
Contra-atacar cada parte do
miolo,
Pois a mim
ensinaram-me
Regras de gramática e de
ortografia
E sabiamente explicaram-me
Que superar as regras era só
para quem as conhecia,
Digo-te que deste um passo
maior que a perna
E meteste-nos o estudo numa
enrascada
De uma ridícula e malfadada
Catástrofe interna.
Faço o que digo e, do fundo
do peito,
Aqui te deixo, sem
reticências
As minhas sinceras, solenes
condolências
Pelo trabalho que tens
feito!
Rodrigo Gonçalves