31/10/14
29/10/14
24/10/14
Em Busca do Tempo - um artigo de Pedro Mexia
Em Busca do Tempo
por Pedro Mexia
Acerca do tempo, leio Bergson, ou Proust, ou Dick, ou os físicos, mas volto, uma e outra vez, ao texto inaugural de Agostinho, bispo, santo e génio: "Mas, então, o que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei bem o que é; mas se me perguntarem, e eu tentar explicar, vejo que não sei".
Eu vivo obcecado com o tempo. Com a substância do tempo, a concepção de tempo, as convenções do tempo, a passagem do tempo, os efeitos do tempo, tudo o que tenha a ver com o tempo me deixa inquieto ou fascinado. E sei que o essencial vem em Agostinho, nas "Confissões", escritas há mais de mil e quinhentos anos: "O que é então o tempo? Quem o poderá dizer com clareza e em poucas palavras? E quem será capaz de compreender bem aquilo a que se refere? Não há nada tão conhecido como o tempo, nada que esteja tão presente no nosso discurso; e, quando falamos dele, entendemos sem sombra de dúvida do que estamos a falar, e entendemos também o que os outros nos dizem quando falam desse assunto." Mas não, não entendemos: falamos de outras coisas quando falamos do "tempo", uma vez que não conseguimos sequer conceber o que seja "o tempo": "Assim, quando nos contam coisas passadas (...), essas coisas vêm da memória, não das próprias coisas que se passaram mas das palavras que tirámos das imagens dessas mesmas coisas, que, atravessando os nossos sentidos, imprimiram no nosso espírito os seus traços e vestígios."
Deus é, para o cristão Agostinho, o criador de todas as coisas, e, portanto, o criador do tempo. Mas pergunta-se o bispo africano: como é que isso aconteceu?, o que é que havia antes de haver mundo e criaturas?, e tempo? Agostinho sabe que Deus criou o mundo, mas quer perceber mais coisas, quase pede desculpa por esse irreprimível desejo. Como é que o mundo foi criado? E, antes de criar o mundo, o que é que Deus fazia? O Criador talvez tenha feito tudo a partir do nada, porque nada existia, não havia matéria, apenas o Verbo, isto é, a vontade eterna. Deus estava antes do tempo, existia em estabilidade imutável, num eterno hoje, numa eternidade sempre presente. Não se concebe "um tempo" em que Deus não "fizesse" nada, justamente porque antes daquilo a que chamamos "a criação" não existia "o tempo". O tempo é uma coisa criada. É uma criatura, como nós.
Como todas as pessoas [que(?)] têm angústias acerca do tempo, Agostinho faz perguntas sobre o sentido, o porquê. Porquê criar o mundo e o tempo? Algumas pessoas perguntam-se se Deus experimentou "qualquer movimento novo", "qualquer nova vontade que O levou a dar existência" às criaturas. Mas como é que na "eternidade" em que Deus vive se manifesta uma vontade ou um movimento? "Porque a vontade de Deus não é uma criatura, mas está antes de todas as criaturas", e "nada seria criado se a vontade do Criador não precedesse essa criação". Portanto, diz Agostinho, "a vontade de Deus" é a sua própria substância: "(...) Se aconteceu alguma coisa na substância de Deus que não se tinha manifestado anteriormente, não podemos na verdade dizer que essa substância fosse eterna. Se a vontade de Deus tivesse querido, desde sempre, que existissem criaturas, porque é que essas criaturas não são também elas eternas?" Terrível pergunta.
Claro que "medimos" o tempo, em minutos, dias, meses, anos. E medimos espaços, contamos sílabas, ouvimos silêncios, assistimos ao movimento dos corpos e dos astros. Mas o "movimento", defende Agostinho, não é o tempo, é apenas uma sua manifestação. E as nossas "comparações" são casuísticas, incompletas, inconclusivas. Além de que só podemos "medir" coisas presentes, coisas que estão a acontecer agora, que podemos seguir em todo o seu percurso. Medimos, na verdade, sem conhecermos quem medimos, medimos as manifestações precárias do tempo, não o próprio tempo. O tempo é uma "duração", mas duração de quê? Há um lugar-comum inevitável: o passado já passou, o presente torna-se de imediato passado e o futuro ainda não aconteceu. Por isso, Agostinho sente-se uma criança, a quem se ensina que o presente estava escondido algures, aparece de repente e vai-se logo embora: "(...) Não podemos dizer o que o tempo é, uma vez que, em geral, ele já não é." Tenho uma enorme reverência por este texto porque é um denso ensaio cosmogónico e teológico, mas ao mesmo tempo uma súplica, uma ânsia. E inclui a mais cristã de todas as perguntas:"Temos de esperar pelo fim dos tempos para saber o que é o tempo?"
Agostinho sabe que isto é a pergunta de uma simples criatura, pois o criador no qual acreditava habita a eternidade, enquanto nós vivemos num presente que não entendemos, assombrados por um "passado apagado pelo futuro" e um "futuro que se sucede ao passado". Sabemos que aconteceram, acontecem e acontecerão fenómenos, e alguns até os podemos prever, como a alvorada, embora só os conheçamos quando eles de facto acontecem. Porque, se não compreendemos o que é o tempo, temos pelo menos a memória. Imagens da infância, por exemplo, que continuam no nosso espírito apesar de toda a nossa ignorância e mesquinhez. Não há passado, mas lembrança; não há presente, mas atenção; não há futuro, mas espera. Ou, como diz Agostinho, "o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras".
23/10/14
18/10/14
15/10/14
13/10/14
09/10/14
Em Homenagem à Professora Ascensão Teixeira (1949-2013)
Em
Memória da Professora Maria Ascensão Dinis Teixeira (1949-2013)
“Forgive these wild and wandering cries,
Confusions of a wasted youth;
Forgive them where they fail in truth,
And in thy wisdom make me wise.”
Alfred, Lord Tennyson, In Memoriam A.H.H.
Escrevo este texto em memória da
professora Ascensão Teixeira, que ensinou nesta escola durante uns longos
quinze anos, tendo-se reformado em Fevereiro de 2009, e que faleceu no ano
passado, a 12 de Agosto de 2013. Ao olhar para trás, confirmo com vergonha que
mais de um ano decorreu desde que primeiro tentei escrever este pobre e
defeituoso in memoriam da pessoa que
foi, de certo modo, a minha primeira mentora, tanto do aluno que fui e sou como
do ser humano que se foi e está a ser construído. Mais tempo tardaria, talvez,
porque uma certa cobardia incita-nos sempre, em tais circunstâncias, a recusar
a lembrança das coisas e a dolorosa perplexidade que advém com esse lembrar.
Inconscientemente – ou assim dizemos, para aplacar esse “bicho álacre e sedento”
que se chama consciência – é fácil cair nas malhas da tentação de adiar o
momento da confrontação com as circunstâcias, as perdas, o seu abissal
significado; e facilmente também o adiamento se torna um hábito e se torna
definitivo, porque a obnubilação do sujeito o exime do sofrimento. O
esquecimento parece ser o remédio por excelência de todo o tipo de sentimentos
de culpa e escrúpulos da consciência, um remédio que, em abono da verdade,
creio, deveríamos ter a coragem de não tomar. Culpado que sou, também, aqui
estou, antes que seja tarde demais, procurando expiar essa culpa.
Mas escrever nunca é fácil. Escrever
sobre algo que nos toca, então, que abala a estabilidade das certezas e das
assumpções que suportam uma rotina diária que, para nossa comodidade, queremos
ataráxica é ainda mais difícil – e que coisa pode abalar mais o homem do que a
morte? Porque, se posso concluir que escrever é, idealmente, demandar respostas
– ainda que, na prática, tal não seja sempre a regra que “alma o ser” da
criação, como podemos confirmar com facilidade e pena -, então aqui trata-se de
expressar choques profundos de realidades, pôr o homem em face de si mesmo e
das ilusões do olhar através do qual se apercebe de si e do mundo. Será,
também, testar o sujeito de uma reflexão até ao limite, pôr à prova a sua
capacidade, assim professada com inevitável vaidade, de encontrar uma solução
para o desequilíbrio que desencadeou tal processo, o desequilíbrio do homem que
vive em face da morte e, consequentemente, de uma tomada de consciência do seu
lugar em relação à dualidade da existência e ao tempo, que a enquadra.
Disse que a escrita é demandar
respostas; se é também encontrar respostas, eu não posso afirmá-lo, porque
respostas é coisa que não tenho. Podia mesmo dizer que estou convencido de que
o resultado de uma tentativa de, como se costuma dizer, “fazer as pazes” com a
realidade, com o tempo, com perdas e dores, com o resultado da equação humana
do viver que experienciamos é uma tarefa megalómana, hercúlea – quase ímpia,
diria eu, pela dimensão sobre-humana de que se reveste. Se pensarmos bem, que
somos nós se não procura? Que é o homem se não uma absoluta falta de respostas,
um lançar-se a navegar em mares não cartografados? (E em face da Morte, então,
que modifica, num momento apenas, toda a configuração do quadro da nossa
existência, que pode o homem ser, ter ou saber que o ajude criar respostas?
Nada, nada senão ilusão. No momento de encarar “os factos da vida”, para usar o
dizer comum, soam quase ridículas as filosóficas palavras do poeta John Donne
“Death, be not proud, though some have called thee / Mighty and dreadful, for
thou art not so”. Mas é, é sim, temos vontade de lhe responder ) O resultado,
pois, não é uma exacta carta de marear, a única certeza é ter-se viajado – e esta
mesma, dentro das limitações da percepção de cada um se define e circunscreve.
Creio que nesta empreitada não me posso pronunciar se não derrotado; razões
virão mais à frente. Mas ouso esperar que a intenção se sobreponha ao resultado
último.
Intuí, no princípio deste texto, um
dever de lembrar. Neste dever humano de lembrar, considero a existência de dois
planos, um plano pessoal e um outro que é institucional, um que é, aqui, meu
(como de outros é separadamente) e um outro que me transcende. Considerarei,
agora, aquele em primeiro lugar e só depois este último, por motivos de
coerência e também por razões óbvias concernentes à natureza deste texto. Tal
opção leva-me de volta à interrogação que deve posicionar-se no cerne da
escrita de qualquer texto, seja este de que ordem for: a interrogação dos seus
motivos verdadeiros, profundos e sinceros para existir. A uma primeira tentativa de aproximação da
questão, poderá parecer redundante, afinal, afirmei atrás a crença, tornada
premissa, de que o esquecimento não deve ser tomado como uma saída de
emergência, uma escapatória algo ignóbil. Tudo muito bem, mas isso é-o
genericamente. Pretendo pois responder a uma questão que eu gostava de poder
afirmar análoga às que esperaria encontrar formadas no espírito de todos
quantos, de direito, deveriam deparar-se com o mesmo caminho de lembrança e
homenagem devida a esta pessoa verdadeiramente única, insubstituível,
incomparável que nos deixou. Passo agora, prestes que estou a empreender esta
via (sacra) de tributo à memória da professora Ascensão, a apresentar as razões
do meu posicionamento (como as vejo) no quadro deste dever de lembrar.
Cheguei como aluno à Escola de Telheiras
em Setembro de 2005. Terá sido algures por volta do dia 16 que vim para a
reunião ritual de início de ano com a Directora de Turma, a professora Maria do
Carmo Vaz, que recebeu a reforma ainda antes da professora Ascensão, no período
lectivo precedente, em Novembro de 2008. Os cinco anos seguintes, findos na
febre dos exames em Junho de 2010, foram, decerto, um dos períodos mais
dourados da minha vida - mais inocentes
também, e por isso, quiçá, igualmente dos mais abundantes em matérias para
retornos da faculdade reflexiva de um eu mais velho. É surpreendente lembrar o
quão cedo a professora Ascensão entrou no universo idílico que me acompanhou em
Telheiras! (Aqui, como é óbvio, invoco o dizer aforístico de Kierkegaard de que
“a vida tem de ser vivida olhando para a frente, mas só pode ser entendida
olhando para trás”). Esse rapaz insular e pouco comunicativo vindo de um
percurso particularmente protegido e isolado no ensino primário tinha pouco à-vontade
ao dar os primeiros passos numa aprendizagem de socialização; encontrei, bem
cedo, um refúgio seguro e igualmente idílico na Biblioteca Escolar, que, ao
tempo conhecíamos por CRE, o Centro de Recursos Escolar. Os meus intervalos e
horas de almoço eram, em larga medida, passados a desenhar, sentado a uma mesa,
imerso no mar de figuras imaginadas que, ao gosto de umas Crónicas de Spiderwick que eu ainda não conhecia, pareciam muito
mais reais do que o mundo da minha experiência. E foi nesse ambiente que travei
conhecimento com a professora Ascensão.
Fazer amigos foi um processo difícil,
lento e cheio de frustrações. Por vezes, não nos apercebemos da falta que as
pessoas nos fazem e deixamos contagiar-nos por uma certa “moda” de raivazinhas
quotidianas, pequenas embirrações e outras emoções de ilusória importância. Mas
o facto é que, como Aristóteles dizia, “quem não vive em sociedade, ou é um
grande deus ou uma grande besta”, pelo que as pessoas, não sendo nenhuma das
coisas, precisam de outras pessoas no seio das quais possam desenvolver-se como
seres humanos. Ora, aqui, chego enfim ao ponto convergente desta digressão pelo
álbum de memórias. A professora Ascensão, nesses dias agora faz tempo corridos,
foi uma das primeiras pessoas a tomar a inciativa de tentar atravessar as
barreiras comunicativas da minha tendência para o isolamento e para uma solidão
que, aos poucos começou a sedimentar-se e a sufocar, em vez de proteger. Uma
das imagens mais vívidas que guardo desses meus dias de criança ainda é a da
professora, sentada ao pé de mim e de um colega igualmente pouco falador de
quem me aproximei, a ver-nos desenhar, em silêncio. Depois, fazia-nos perguntas
sobre os desenhos, interessava-se assim que lhe dávamos essa oportunidade.
Fazia-nos, ou assim o lembro, sentir que, ao sairmos do mundo do desenho, este
tinha sentido para mais alguém. É um processo lento, ganhar a confiança de uma
criança introvertida, mas nunca vi a professora Ascensão desistir de nenhum
aluno – e de mim, certamente, não desistiu, pelo que lhe tenho uma enorme
dívida de gratidão que agora, desgraçadamente, não poderei jamais esperar
pagar.
Só vim a ser aluno da professora
Ascensão no meu oitavo ano, expectativa que me acompanhava desde o quinto ano,
lembro bem. Nessa altura já desenhava menos, e, com a paixão pelas histórias,
estava a nascer e em íngreme cresdendo
o que havia de se tornar um amor pelas línguas, pela música da palavra, pelos
segredos do diálogo com os textos. Ora, isto para dizer que aos desenhos, no
meu percurso de conversão (processo quase de fé) de criança em adolescente,
seguiram-se outras fases, mas as ligações continuavam. A professora Ascensão (e
outros professores) esteve presente ao longo de todo esse processo, como esteve
no de inúmeros alunos que, sei-o bem, dela guardam grata memória. Tenho sempre
dito que a pessoa que sou foi moldada a partir de um barro instável por
inúmeras mãos. De poucas pessoas tal é tão fielmente verdadeiro como da
professora Ascensão Teixeira e talvez isto dito bastasse para dar a entender o
significado que para mim tem escrever este texto. Não resisto, no entanto, a
dizer mais algumas palavras.
Muitos episódios poderia contar, entre
máximas, lições de vida e de moral, técnicas e orientações metodológicas que
recebi da professora Ascensão, antes de ser formalmente seu aluno, durante
esses dois períodos do meu oitavo ano e mesmo depois, no contacto que
mantivemos. Dentre a vastidão de memórias, não posso deixar de narrar um
episódio que, para mim, diz muito e fala com melhor dicção do que eu sou capaz
de fazer por palavras próprias.
Lembro-me como se tivesse sido ontem.
Algures no Inverno de 2008/2009, pouco antes da sua reforma, portanto, entrei
no CRE como se entrasse em casa e encontrasse um cheiro mágico a acolhimento.
Avistei, quase de imediato, a professora Ascensão com dois alunos do nono ano,
mais velhos que eu; eram eles o Ronit Himlatlal e o Bruno de Magalhães, antigos
membros da primeira equipa de monitores da BE criada nesse mesmo ano lectivo
pela professora Paula Andrade, que era então, como agora, coordenadora da BE.
Nada de estranho neste encontro não fosse o facto, que me causou estranheza, de
cada um dos três girar suavemente as mãos
em direcção ao mesmo ponto indefinido algures na massa de livros na
estante, como se estivessem a aquecê-las à lareira numa noite fria.
Aproximei-me, intrigado. Bons-dias e cumprimentos amigáveis trocados, devo ter
acabado por ceder à curiosidade e perguntado o que é que se passava. Nunca mais
me hei-de esquecer da resposta da professora e do efeito que provocaram em mim
as suas palavras:
- Estamos a aquecer-nos ao pé de uma
fogueira invisível! – disse, com uma serenidade amigável que lhe era habitual.
Passado pouco tempo, acrescentou, em voz
baixa, quase como se murmurasse uma oração mágica, mas sempre sorrindo
levemente para nós:
- Ah, a imaginação é uma coisa
fantástica!
(Ao preparar-me para relatar este
momento, dei comigo a pensar muitas vezes, a fazer um esforço de memória para
garantir que não erraria na reprodução das suas palavras exactamente como estas
tinham sido proferidas. Fiquei algum tempo na dúvida se não seria antes “Ah,
como é fantástico o poder que as palavras têm”, indeciso também quando à ordem
sintáctica, mas sobretudo entre “imaginação” ou “palvras”. Estou quase cem por
cento certo, no entanto, que o que transcrevo agora foi exactamente o que
ouvi.)
Estas palavras têm-me acompanhado desde
então e nunca cessei de dar por mim a reflectir sobre elas e sobre a lareira
invisível onde ardia um acolhedor fogo caseiro. Lembro-me que a suavidade e a
bondade que eu sentia irradiarem da professora Ascensão, a candura amadurecida
da sua visão, sempre davam a entender que, ao falar, respondia a estímulos
enraizados nalguma dimensão profunda – para mim então obscura – da natureza
humana. Creio que não saio da mais estrita verdade ao afirmar que foi graças à
professora Ascensão - que, falando connosco como as crianças que éramos
conseguia ainda assim trasmitir-nos lições e observações agudas acerca do
questionamento da pessoa humana e do seu lugar no mundo em que vive – tive o
meu primeiro contacto com duas questões fundamentais: 1) que a vida não é uma
tela inócua, que o ser humano é a realidade mais complexa do universo; 2) que é
no plano narrativo, no universo das histórias, no reino da palavra e da
ficcionalização e “verbalização” de si que o homem encontra um plano maior para
se pensar a si, aos outros e ao mundo (e daí, claro, o indizivelmente
fundamental papel da literatura, da língua; o seu poder, a sua magia). Lições
fulcrais para qualquer jovem, lições que ainda não acabei de aprender, lições
que talvez só agora comece a aprender. E disse-nos tudo sem nos impingir nada.
A professora conversava connosco e as mensagens ficavam, latentes em nós, à
espera que o tempo viesse para as podermos pensar.
Relembro, pois, a professora Ascensão
como a pessoa em que eu primeiro vi espelhada o gaudium magnum que preenche a vida de todos quantos se dedicam de
verdade à nobilíssima causa de conduzir a formação humana (porque a formação
académica só o é de facto se o conhecimento for acompanhado do desenvolvimento
humano que o permite deter e aplicar de um modo altruísta e verdadeiramente civilizado – ou por outra, culturado) de sucessivas gerações de
alunos. Cada aluno, cada particular percurso de aprendizagem representa, digo
eu, uma peregrinação cujo sucesso significará a dignificação de tudo o que,
bom, está contido no conceito de “alma humana”. Mais revoltantes são os
sucessivos ataques ao papel da educação no seio das nossas sociedades quando nos
lembramos que o significado de uma paidéia,
essa epopeia sagrada, reside na diferença fundamental entre falhar ou ter
sucesso na formatação básica de cada ser humano que se prepara para encetar uma
epopeia em que finis origine pendet.
Mas mais do que isso, recordo aqui uma pessoa extraordinária que nunca desistia
de ninguém, que nunca hesitava em pegar mesmo no mais fraco barro para daí
ajudar a nascer uma pessoa melhor – e mais feliz. Fazia-o como que imbuída de
uma pietas romana, esse conceito,
estado da alma, que a palavra portuguesa “piedade” só muito superficialmente
pode traduzir. Uma daquelas pessoas raras, especiais, que procurava sempre o
melhor em cada um, que trabalhava incansavelmente para dar sempre o seu contributo
para fazer de todos nós melhores pessoas, pessoas mais felizes. Ou, talvez seja
esse o termos mais adequado, pessoas mais humanas. Tantas palavras ditas na
tentativa de exprimir como era a professora Ascensão que eu conheci, e no
entanto, nem por sombras suficientes. Tudo somando, no entanto, creio que os
traços de carácter que mais vividamente lhe recordo poderiam ser sintetizados
deste modo: era uma das pessoas mais incondicionalmente generosas e humanas que
conheci até hoje e não creio vir a conhecer muitas – ou mesmo alguma – de quem
possa dizer o mesmo; a par deste, um outro traço maior recordo, o da pessoa
que, apesar da longa e sofrida experiência, conseguia conservar uma candura,
uma doçura, um inocência luminosa. O adjectivo “luminosa”, da luz desses anjos
que passam na nossa vida e não se repetem, será, de resto, o mais indicado para
descrever este ser humano formidável que, mesmo nos momentos que lhe eram mais
penosos, não deixava de ter o condão de acordar o que de bom houvesse em todos
e cada um.
Apenas umas breves palavras mais. Antes
de pegar no segundo fio do meu raciocínio que na introdução deixei anunciado,
não posso deixar de voltar o meu olhar para estes últimos anos, após a reforma
da professora Ascensão em 2009. Mantive contacto com a minha antiga professora
desde então. Ao longo desses quatro anos, nunca deixou de dispor generosamente
do seu tempo para ouvir as minhas novidades, nunca deixou de se interessar, de
aconselhar, de se preocupar, ouvidos atentos e receptivos a tudo, desde do fio
dos eventos do meu percurso até aos meus problemas da mais variada ordem,
passando por conversas longas sobre o Acordo Ortográfico. Nunca ouvi a
professora queixar-se e nas nossas conversas sempre ouviu e aconselhou mais,
mas aos poucos, ao longo do tempo, foi começando a perceber que os anos da
reforma, em vez de lhe trazerem paz e felicidade, lhe trouxeram novos fardos e
sofrimento - e cada vez mais pesados. E mesmo um adolescente (agora adulto),
não pôde deixar de pensar nisto (e agora, e nestas circunstâncias ainda mais):
disse acima que tinha para com a professora Ascensão uma dívida de gratidão
irreparável por tudo o que fez para destruir os muros de solidão que me
rodeavam na escola…terei eu feito sequer o mínimo para minimizar a sua solidão?
Se imodesto é o pensamento de que se podia ter feito alguma diferença, é uma
imodéstia em que não consigo deixar de incorrer. Não é uma certeza, é uma
dúvida, uma dúvida que ninguém pode calar e com a qual terei de viver daqui em
diante. Porque a morte de alguém é a condenação dos vivos, o que nos traz é a
dimensão do que não fizemos, de que, de algum modo, não somos nada porque não
soubemos fazer nada. A Morte confronta-nos com a consciência da extensão do nosso falhanço
para com a pessoa que morreu, falhanço tanto maior, neste caso, porque se trata
de uma pessoa que merecia o melhor de nós, aquelhe melhor que muitos de nós não
possuem sequer, porque nos deu o melhor si. Só podemos, sem esperança,
perguntar aos ecos: onde estávamos nós quando fomos precisos?
De tal sorte me vejo chegado ao último
ponto do meu texto, ao segundo plano do «dever de lembrar» a que aludi. Refiro-me
ao plano oficial da Escola, a instituição representante do ideal pelo qual a
professora Ascensão trabalhou durante trinta e nove anos. Não é agora, não é
nova a constatação de que as instituições facilmente caem na tentação de se
tornarem autómatos impessoais, burocraticamente desprovidos de cabeça pensante,
identidade e sentido do humano. As escolas deviam ser células de resistência a
tal tendência, porque o próprio conceito de escola idealmente carrega em si
esta noção, a concepção de que uma paideia
é a “epopeia” multidimensional cujo objectivo basilar é construir o ser humano
para estar à altura da sua própria humanidade. Pensar na actual dinâmica
ministerial e na própria lógica de gestão interna de muitas direcções é
constatar com horror a subversão total de princípios que, no domínio educativo
são sagrados – excepção notável tínhamo-la neste agrupamento, na pessoa da
anterior Directora, a professora Manuela Esperança, a quem aproveito para,
oportunamente, prestar os meus agradecimentos sinceros. Aproveito o mesmo
fôlego para agradecer à professora Paula Andrade, que concebeu a ideia de uma
homenagem da Biblioteca da EB 2+3 de Telheiras nº 1 à professora Ascensão
Teixeira, intenção na senda da qual posiciono este meu texto.
Ora, nesta paideia é da maior importância a consciência da pessoa humana, de
que, sendo nós “pedras vivas” de uma catedral metafórica, não somos apenas
pedras, não somos de “usar e deitar fora”. Perdoe-se-me a ousadia de dizer tal
coisa num tempo em que afirmações desta natureza são literalmente censuráveis –
e por isso frequentemente censuradas -, mas no quadro desta consciência figura,
entre os princípios primordiais, o da gratidão. Gratidão para com as pessoas
que trouxeram a concretização desse ideal de luz e arte viva ao ponto de
concretização presente, de que somos herdeiros - mais poderia discorrer sobre a doença
institucional corrente, irrupção crónica quiçá, mas tenho vindo a aprender,
para minha decepção, de que arengar com instituições é, tantas vezes, como
pregar o evangelho aos leões e que mesmo os mais cuidadosos e enciclopédicos
sermões expondo caudas, chifres, dentes e tridentes raramente acham convertidos
entre os diabos, como o Padre António Vieira poderia confirmar. Direi apenas
(ainda que a verve me ferva de sobra para umas centenas de linhas) que,
faltando em tempo útil, após a morte só pode a gratidão ser manifestada através
da lembrança, da tomada de consciência do nosso lugar como fruto do lavor de
outrem – falo, nestas circunstâncias da professora Ascensão, mas tal dizer quase
poderia ser slogan aforístico pela frequência com que teria de ser repetido
para cada caso que nele se enquadra.
Pergunto, portanto, que direito temos
nós de esquecer? Numa situação como esta, em que somos confrontados com a morte
de alguém, seja qual for o tipo de ligação existente entre nós e a pessoa
falecida, como podemos nós arrogar-nos o direito de evitar a dor, de evitar
considerações sobre a mesma, de evitar, como diria um inglês, “to dwell on it”?
Tal questão, quando falamos, ademais, de alguém que contribuiu com tantos anos
de dedicação total para um projecto nobre de ensino e, por isso, para o bem de
uma comunidade que é a nossa, só pode ter uma resposta: devemos lembrar, não
esquecer. Esquecer o respeito e a gratidão devida é um outro tipo de morte, uma
morte ética nossa, uma grave traição de valores. Esquecer é, não só uma traição
de valores como uma abominável, uma indizível cobardia. É certo, em face da
dor, da perda, o homem precisa de aprender a “seguir em frente”, a não
desistir, por sua vez, de viver. Mas não é a isso que me refiro, não me refiro
a encarar a dor e, a seu tempo, ser capaz de continuar, por muito que custe;
refiro-me (e denuncio), isso sim, à recusa de lembrar, à recusa de entabular
este honesto (e necessariamente doloroso) diálogo com o significado da morte e
da perda, à procura de uma evasão ao peso que tal acarreta. E, sobretudo, refiro-me,
ao nível já não do fenómeno do colectivo como grupo de pessoas individuais, mas
ao fenómeno do colectivo impessoalizado da instituição que se traduz num
descartar das pessoas que passam como se fossem peças fora de jogo num
tabuleiro de xadrez.
É, certamente, desconfortável para
certas conjunturas relembrar o quando se deve a quem desaparece, porque isso
evidencia os buracos no tecido roto dos que vieram depois. Diria que, por isso,
a actuação das instituições face às “pedras vivas” que vão perdendo é a medida
da sua saúde – do que se pode concluir que certas instituições andam mesmo mal
de saúde e que a culpa, tão frequentemente, não é do ideal, o ideal não faliu,
quem está falido é quem devia encarnar esse ideal e se confessa por omissão.
Nada mais eficaz na distinção do trigo do joio e, por desconfortável que seja,
é bom as pessoas que dão forma a instituições do cariz de uma escola se lembrem
de quem as fez, se lembrem, anões que todos somos, aos ombros de que gigantes
andamos, seja qual for a esfera e a dimensão em que tal fenómeno se verifique.
Sob pena de, é claro, nada mais permanecer do seu valor original de ideal do
que a tristeza de uma sátira.
Mas basta disto, eu disse que não tentaria
pregar evangelhos a leões nem converter peixes. Resta-me, portanto, fazer
aquilo que é mais importante e exortar a que nos lembremos sempre, sempre,
sempre da Professora Ascensão Teixeira. Guardemos sempre grata memória de uma
pessoa que nos deu tanto, que tanto teria ainda para nos dar e, sobretudo,
daquilo que nos deu e que ainda não soubemos descobrir no seu legado pessoal e
profissional. Se é irreparável a dívida de gratidão que temos, quer o saibamos,
quer não, menor não é a extensão dos gestos que não tivemos e das palavras que
não dissemos. Somas as horas, foram poucas. Guardemos isso também na memória,
não vacilando perante o peso desse encargo. Saibamos guardar, por honra e hombridade,
o exemplo de uma mestra formidável cujo caminho se pautou, para usar expressão
de poetas, “pela soma das virtudes”, pela dedicação e abnegação totais, por uma
generosa entrega aos outros – enfim, por tudo aquilo que deveríamos ter sido
ensinados a admirar como o summo bono
do nosso desenvolvimento humano. Desejo apenas que saibamos nunca esquecer uma
pessoa que era genuinamente boa no sentido mais profundo da palavra, que
encontrava sempre uma gentileza para fazer a alguém, uma palavra amável para
dizer, que jamais abandonava os seus princípios ou afrouxava na sua
determinação de os observar e defender. Uma pessoa, de novo devo dizer, que nos
deu o melhor de si e merecia o melhor de nós – cuja memória merece o melhor da nossa lembrança.
Aqui chega, ora, ao fim a viagem de
lembrança através da qual me propus conduzir-vos. Se muito ficou por dizer, tal
se deve ao facto estar além das minhas capacidades de expressão, ou ainda por
fazer parte daquelas lembranças que não conseguimos deixar de guardar em
silêncio apenas para os olhos da nossa própria memória. Mas talvez o que ficou
omisso fique melhor assim, por ser impossível de exprimir, por estar para além,
em significado e impacto, de qualquer expressão. Porque há coisas que não podem
ser ditas, apenas sentidas e, sentidas, só encontram voz no silêncio.
Lisboa, Setembro de 2013 – 9 de Outubro
de 2014
Tomás Vicente
06/10/14
Nova edição de "Os Fazedores de Letras" - Nº 77
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