O
Feijoeiro Invejoso
Em
tempos, numa velha casa de campo que caía aos bocados, vivia um agricultor
igualmente velho e decrépito que também caía aos bocados, facto de que era
prova a sua reduzida e maltratada dentição.
O velhote gostava muito de
feijoeiros – muito mais do que gostava de qualquer outra planta, vá-se lá saber
porquê – e, como tinha um grande quintal, ocupava sempre metade do terreno com
eles. Achava-os curiosos e muito engraçados, com as suas folhas cerradas e os
seus retorcidos caules verdes, numa marcha ininterrupta em direcção ao
infinito, enquanto durava a sua curta vida. Embelezavam-lhe o quintal,
constituindo um pequeno maciço de trepadeiras que rapidamente tapavam qualquer
indício remanescente dos paus que lhes serviam de apoio.
No
ano em que começa esta história, o idoso, decidindo que a velhice lhe dava uma
certa liberdade, cometeu uma pequena e inofensiva extravagância: semeou
feijoeiros por todo o quintal, espalhando sementes em cada bocadinho de terra,
o que resultou, quando os feijoeiros cresceram e se tornaram vigorosos, numa
verdadeira floresta. Os vizinhos diziam-lhe que não era prudente descurar o
cultivo de outras plantas para se dedicar totalmente aos feijoeiros, para o
caso de a sementeira não dar frutos. Mas o velhote apenas se ria e respondia
que os plantava para lhe adornarem o jardim. Mas os seus vizinhos, por muito
sensatos que fossem, até nem tinham muita razão, uma vez que ele reservara para
os outros vegetais todas as outras porções de terreno que possuía, aqui e
acolá, e não tinha com que se preocupar, nesse aspecto. Ali, no seu refúgio, só
queria feijoeiros e, pensava ele, daí não viria mal nenhum ao mundo…
O
tempo foi passando e os feijoeiros desenvolveram-se tal como seria de esperar.
Eram, na sua generalidade, plantas calmas e de bom humor que dirigiam, sem
pressas, as suas hastes para o alto das canas onde se apoiavam para a árdua
subida. Atingir o topo era o único objectivo que tinham na vida e
contentavam-se com ele.
No
entanto, havia um que era diferente dos outros. Era um pequeno rebento de
feijoeiro nascido num canto do quintal do velho, onde a luz não abundava.
Ninguém sabe se foi essa falta de luz que a afectou, ainda nos seus primeiros
dias, mas essa minúscula plantinha sentia uma enorme vontade de superar os
outros em tudo, coisa que nunca dá bons frutos. Por isso, apesar de ao
princípio ser pequeno e insignificante, depressa deixou os seus irmãos muito
para trás. Nas redondezas, todos os animais e plantas se admiravam com o seu
rápido desenvolvimento e todos falavam sobre o assunto, aplaudiam e lhe davam
ânimo. A jovem planta inchava de um orgulho secreto.
Porém,
a admiração que todos passaram a nutrir por ele devido aos seus feitos depressa
esmoreceu, porque o feijoeiro se tornou mal-humorado e começou a tratar
altivamente os seus congéneres. Devido a isto, tornou-se rapidamente o motivo
de risota dos outros, que, entre incomodados e ofendidos pelo avanço que ele
lhes levava, não deixavam passar em branco uma única oportunidade que se lhes apresentasse
para inventarem uma boa dose de piadas maldosamente inocentes e amplamente
justificadas, sobretudo depois de descobrirem os sonhadores desejos do seu
irmão de sementeira. É que ele tinha aspirações mais ambiciosas…mesmo muito
ambiciosas…
Certo
dia apanharam-no a confidenciar aos seus botões os sonhos mais profundos do seu
coração, falando em voz baixa, julgando ter o seu íntimo como único ouvinte;
ouvinte esse que, decerto, guardaria, fielmente, segredo de tudo quanto lhe
dissesse. E o pobre tolo ambicionava tantas coisas que lhe deu matéria de gozo
para muito tempo!
Grande
parte - se não todas- dessas imprudentes ambições estava, naturalmente, fora do
seu alcance: ora desejava voar como um falcão, ora queria ser alto e robusto
como um choupo, ou ser tão sábio como um mocho, ou…já estão a perceber? Pois,
era mesmo isto que ele estava a dizer de si para si quando foi escutado e, pior
ainda, admitiu também ter muita inveja daqueles que possuíam tais dons. Quando
se apercebeu da atenção extra que recebia, já era tarde demais. Os seus irmãos
feijoeiros correram a espalhar o que tinham ouvido e, dentro em breve, todos os
seres vivos das redondezas riam a bom rir.
Diga-se
de passagem, foi um grande erro gozar a pobre planta, pois não há nada mais
prejudicial do que fazer pouco de alguém dado à altivez por algo tão
inofensivo, uma vez que, na maioria das vezes, tudo poderia não passar de um
devaneio ambicioso nunca posto à prova, se não fosse ridicularizado e,
consequentemente, nunca originaria mal nenhum e até o próprio se esqueceria,
com o tempo, de tão tolas aspirações. Mas, infelizmente, a sensatez não
abundava por aqueles lados e o feijoeiro tornou, deste modo, o principal motivo
de zombaria das imediações.
Aconteceu
então que passou então a ser conhecido como Feijoeiro Invejo, epíteto que veio
substituir o de Trepa-Tudo, nome carinhoso que lhe haviam dado quando começara
a demonstrar as suas grandes proezas no que ao rápido crescimento diz respeito.
A inveja começou então a aumentar de intensidade dentro da tonta plantinha, que
já não tinha qualquer domínio sobre si própria.
Certa
vez, não aguentando mais esperar pelo dia que não chegava e que lhe traria a
realização de todos os seus imprudentes desejos, decidiu perguntar à coruja
sábia como poderia, pelos seu próprios meios, alcançar os seus intentos. Muitos
animais e plantas ouviram o que ele disse e a sua risota foi tal que o
feijoeiro sentiu-se gelar por dentro, desejando esconder-se no mais fundo
buraco da terra, longe da vista de todos. A coruja, bondosa e sabida, não se
riu e respondeu:
-
Não, filhinho, não há maneira de alcançares o que desejas ou, se há, eu não
sei. Lamento.
Assim
terminou a conversa, mas a troça que fizeram dele não abrandou ainda durante
muito tempo. Por isso, a sua inveja transformou-se em raiva e a raiva
transformou-se em ódio. Esse ódio tornou mau o que dantes era de uma revolta
quase sem malícia.
Os
dias foram correndo e a plantinha imprudente sentia as suas entranhas
contorcerem-se cada vez mais rancorosamente. Queria atingir, a qualquer custo,
aquilo pretendia. Por fim, quando percebeu que nunca lhe seria possível
realizar as suas loucuras, a sua ira foi tal que só pensava em destruir, de
algum modo, a tranquilidade daqueles que usufruíam daquilo que ele não podia
ter. Pensou longamente, misturando no mesmo caldeirão astúcia, a qual ele
possuía em pequena quantidade, e loucura originada pelo ódio, coisa que agora
já tinha em abundância. Por fim, decidiu o caminho a seguir, fazendo o que
melhor sabia fazer, crescer…
Um
dia, o grande e alto choupo acordou espartilhado por uma resistente trepadeira
que subia afincadamente por ele acima: era o pequeno feijoeiro. A amargurada
planta tinha-se esticado tanto quanto lhe era possível. Ultrapassado o topo da
sua esguia vara de apoio, rastejara pelo chão até à base do choupo e começara a
trepá-lo. Estava uma noite escura, as estrelas não brilhavam e a lua dormia
também, dando cobertura à progressão dos planos da furiosa plantinha. Assim,
quando amanheceu, já o feijoeiro ia muito alto, agarrado ao tronco da pobre
árvore com todas as suas forças.
Daí
em diante, deu livre curso à sua maldade e à raiva que o consumia; derrubou o
ninho do falcão e a casa da coruja sábia e causou prejuízos a todos quantos
viviam nos ramos do choupo - e até à própria árvore, enfraqueceu devido ao
parasita. Sem se dar conta, o feijoeiro caminhava também para a própria
desgraça.
Apesar
de ter dado largas ao seu mau génio através de todas estas patifarias, quando
chegou ao topo, a sua desilusão não tinha limites. Não lhe era possível
encontrar consolo na desgraça dos outros nem sentia aplacada a sua fome de
vingança…apoderara-se si um grande e aflitivo vazio. Mas não teve tempo para
pensar muito no que fizera e, eventualmente, arrepender-se, pois a árvore, que já
era idosa, minada pelo parasita e desejando pôr termo à maldade do feijoeiro,
ordenou às suas raízes que deixassem de oferecer resistência e, dias depois,
quando veio o primeiro vento forte, tombou, esmagou a trepadeira e caiu na
horta onde proliferavam os feijoeiros. Parece que, daí em diante, o velho
agricultor não mais os semeou, alegando que davam azar.
Tomás Vicente (ex-aluno)